Nos últimos anos, as frágeis vitórias contra a AIDS obtidas
na África apoiam-se em poucas fontes – entre elas, a Unitaids, uma agência da
ONU criada em 2006. Fundada por iniciativa de Brasil, França, Chile, Noruega e
Reino Unido, financiada por um imposto internacional embrionário, que incide
sobre bilhetes aéreos, a Unitaids é, ainda, arejada pela presença de
representantes da sociedade civil em seu conselho executivo. Adquire
medicamentos genéricos e eficientes – especialmente na Índia – e os envia para
nações como Zâmbia (onde a
expectativa de vida caiu para 43,4 anos), África do Sul (49,3 anos) e Nigéria
(46,9). Apoia 16 projetos, em 93 países (sua atuação estende-se à Ásia e
América Latina). Mas às vezes, seus esforços esbarram em estranhos obstáculos.
Em 12 de novembro de 2008, por exemplo, autoridades aduaneiras holandesas
confiscaram, no reluzente aeroporto de Schiphol, uma carga do anti-retroviral
abacavir. Produzida pelo laboratório indiano Aurobindo, a droga destinava-se a
portadores do HIV na Nigéria (Schiphol era a melhor escala, na malha aérea
internacional). Foi testada e aprovada pela rigorosa agência norte-americana de
controle sobre medicamentos (a Food and Drug Administration, FDA). Sua produção
e consumo são legais tanto no país de origem quanto no de destino. Mas
incomodam o laboratório britânico Glaxo-SmithKline – o quarto maior do mundo,
em faturamento. Produtor inicial do abacavir, o Glaxo patenteou-o nos países da
União Europeia (UE). Em clara afronta a princípios do Direito Internacional,
julgou-se em condições de fazer valer esta patente em Estados que não a
concederam. Foi prontamente atendido pela alfândega holandesa.
Embora bizarro, o episódio repetiu-se pelo menos quinze
vezes, nos últimos três anos – em diversas ocasiões, com destruição física dos
medicamentos. Além da AIDS, impediu o uso de drogas contra tuberculose e
malária; antibióticos, anti-hipertensivos e redutores do colesterol. Inaugurado
na Holanda, o procedimento foi repetido em portos e aeroportos na França e
Alemanha. Afetou, na América Latina, compras feitas por governos e empresas
privadas do Brasil, Colômbia, Equador, México, Peru e Venezuela. O número exato
de apreensões é mantido em sigilo pela UE.
Em 5 de maio de 2010, a carioca Renata Reis sentiu-se
recompensada, após anos de batalha. Advogada da Associação Brasileira
Interdisciplinar sobre AIDS (a Abia) e coordenadora do Grupo de Propriedade
Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), ela obteve,
em Madri, uma sentença que pode
inibir o confisco de medicamentos. O Tribunal Permanente dos Povos (TPP), um
importante fórum de opinião que se reúne desde 1974, classificou a ação da
União Europeia como violação grave dos Direitos Humanos.
O TPP não tem poder vinculante – ou seja, não produz
resultados jurídicos imediatos. Mas seu dictamen reflete uma articulação
internacional crescente, que envolve sociedade civil e Estados e pode tornar-se
vitoriosa nos próximos meses. Além da Rebrip, a denúncia de Madri foi formulada
e apresentada por organizações da Colômbia, Equador Peru – e apoiada por
diversos movimentos em defesa da saúde na Índia. ONGs europeias participaram
ativamente, nos últimos anos, tanto do esclarecimento da opinião pública
(furando o silêncio da mídia) quanto do rastreamento das apreensões. No final
de 2009, os governos brasileiro e indiano levaram o caso à Organização Mundial
da Saúde (OMS). Em maio último, tomaram as primeiras medidas para contestar a
prática da UE na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Esta sucessão de fatos importantes e contraditórios, que
seria improvável há poucos anos, revela algo novo no ambiente da globalização.
A disputa entre os direitos humanos e a lógica dos lucros persiste e se acirra.
No entanto, há pelo menos quatro grandes surpresas, em relação ao panorama que
prevalecia até o início do século. 1) A OMC está deixando de ser um fórum onde
se impõem invariavelmente os interesses das grandes corporações e dos países
mais ricos. 2) Descontentes, os antigos todo-poderosos tendem a deixar a
diplomacia e as boas-maneiras das organizações internacionais e partem para
medidas mais brutas e unilaterais. 3) No entanto, tal movimento depara-se agora
com uma postura menos submissa dos países “periféricos”. Fortalecidos, eles já
não aceitam a condição de meros figurantes no tabuleiro do poder global –
embora suas políticas internas continuem, em muitos casos, amarradas ao passado.
4) Ampliou-se, por tudo isso, o espaço para que organizações da sociedade civil
e certos governos somem forças em favor de objetivos específicos – e alcancem
vitórias.
A advogada Renata Reis acompanha de perto, há anos, todos os
lances que estão desenhando o novo cenário. O dispositivo jurídico da União
Europeia que autoriza as alfândegas a apreender medicamentos, conta ela, é a
Resolução 1383, de 22/7/2003. Foi adotada num ano decisivo para a OMC. Meses
antes, fracassara, em Cancun (México), uma Conferência Ministerial da
organização convocada para deflagrar uma nova rodada de liberalização do
comércio internacional. Seu foco era levar adiante o grande projeto estratégico
das corporações transnacionais: abrir os mercados dos países do Sul,
especialmente os de serviços e bens imateriais. Entre as propostas frustradas
estavam o endurecimento das leis de
patentes e o fim da circulação não-mercantil de produtos culturais, como
música e audiovisual. Além das mobilizações da sociedade civil, foi decisiva
para a derrota das transnacionais a formação do G-20 – um bloco de países do
Sul interessados em ter voz ativa na OMC.
A Resolução 1383/2003 é uma espécie de reação selvagem a
este insucesso. Jamais submetida ao Parlamento europeu (muito menos debatida
entre as sociedades), foi aprovada burocraticamente pelo Conselho de Ministros,
formado por um único representante de cada governo da UE.
Adotado de forma tortuosa, “o dispositivo fere diversos
princípios básicos do Direito Internacional e do comércio entre os países”,
frisa Renata Reis. Desrespeita a territorialidade (as leis não podem
ultrapassar as fronteiras dos Estados que as adotaram). Afronta a liberdade de
trânsito de mercadorias, consagrada no Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas
(GATT), da qual a União Europeia é signatária. Viola o espírito da Declaração
de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública, que permite aos Estados-membros da OMC
relevar o direito às patentes, sempre que isso for necessário para garantir
acesso das populações aos medicamentos. Choca-se até mesmo com a resolução do
Parlamento Europeu de 12/7/2007, segundo a qual “a política da UE deve visar a
maximização da disponibilidade dos produtos farmacêuticos a preços acessíveis,
nos países em desenvolvimento”.
A resolução 1383/2003 permaneceu na gaveta por algum tempo.
Passou a ser aplicada em 2008, outro marco para o comércio internacional. Em
junho desse ano, um grupo de dezesseis países e de grandes corporações começa a
negociar, em reuniões sigilosas, o ACTA, um acordo comercial com objetivos
muito semelhantes aos que foram frustrados em Cancun. O palco já não é a OMC:
os poderosos preferem reunir-se à parte e tentar chegar a um acordo – para em
seguida “exportá-lo” ao resto do mundo. Renata observa: “a 1383/2003 é uma espécie
de balão de ensaio para o ACTA. Entre os aspectos mais criticados do acordo
estão o rompimento do princípio de territorialidade e o corrupção do papel das
alfândegas, colocadas a serviço das grandes empresas”.
[Ação Internacional pela Saúde]. Sediada em Amsterdam,
focada na luta para que o acesso aos medicamentos seja um direito de qualquer
habitante do planeta, a ONG localizou e comprovou as apreensões ilegais de
remédios.
A partir de 2009 – e talvez aqui esteja a novidade mais
promissora – os movimentos cidadãos passaram a ter apoio de dois Estados com
papel crescente no cenário internacional: Brasil e Índia. Em janeiro daquele
ano, após o confisco de medicamentos destinados ao país (uma carga do
anti-hipertensivo genérico Losartan,
produzida na Índia), o Itamaraty emitiu nota de protesto e abriu debate sobre o
tema no Conselho Executivo da Organização Mundial de Saúde (OMS). O impacto
provocado pela iniciativa teve um primeiro resultado imediato. A UE viu-se sem
condições políticas de levar adiante tentativa de incluir, na agenda da OMS,
uma proposta (batizada de Impact) que restringia a produção de medicamentos
genéricos – condicionando-a à concordância da empresa detentora da patente…
A iniciativa governamental de maior repercussão viria em 12
de maio último. As delegações brasileira e indiana contestaram conjuntamente a
Resolução 1383/2003 da União Europeia na própria OMC. Fizeram-no por meio de um
procedimento denominado consulta – o primeiro passo para instaurar um litígio.
A posição foi apoiada de imediato por China, Argentina, todos os países
africanos e um elenco de ONGs internacionais.
Renata Reis lamenta que esta postura altiva não seja
acompanhada por setores do governo brasileiro, quando a luta em favor dos
genéricos se dá no próprio país. “O Instituto Nacional de Propriedade
Industrial (INPI)”, reporta ela “boicota sistematicamente as tentativas da sociedade
civil e do ministério da Saúde para limitar as patentes farmacêuticas”. Mas a
nítida mudança no cenário internacional tende a ridicularizar o principal
argumento destes bolsões de resistência aos novos tempos. Contrariando todas as
evidências, eles insistem em pensar que “não há alternativas”…