Aparentemente, o conteúdo do segundo lote é ainda mais
devastador. Viriam à luz, especula-se, não apenas atrocidades cometidas por
soldados no campo de batalha — mas relações diplomáticas perigosas que
Washington manteve com governos aliados. Numa corrida contra o tempo para
evitar o vazamento, o Pentágono – e,
em especial, a direita norte-americana – têm recorrido a ameaças, mistificações
e intimidação.
Na semana passada, o próprio secretário de Defesa, Robert Gates, lançou-se a elas. Numa
atitude de enorme risco, ele admitiu implicitamente a autenticidade dos
documentos que o Wikileaks tem em mãos. Afirmou que o material contém “enorme
volume de informações sobre nossas táticas, técnicas e procedimentos”; que sua
divulgação ameaça “os soldados norte-americanos e aliados” e terá
“consequências potencialmente muito graves”; que será “de grande valia para o Taleban
e a Al-Qaeda”. O porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs, engrossou o coro em
tom de guerra, afirmando que a publicação dos arquivos irá “ajudar o inimigo”.
Ainda mais agressivo e ameaçador, o colunista Marc Thiessen escreveu no
Washington Post: “Os EUA têm capacidade cibernética para impedir que WikiLeaks
divulgue o material. O presidente Obama ordenará que os militares usem a
capacidade que têm? (…) Se [Julian] Assange,
[o editor do Wikileaks] for deixado livre e os documentos em seu poder forem
divulgados, Obama só poderá culpar a si mesmo.”
O esforço para impedir que as informações cheguem à
opinião pública recebeu o apoio de uma ONG costumeiramente aliada a Washington:
os Repórteres sem Fronteiras (RSF). Numa nota divulgada em 14/8, a entidade
tenta mobilizar, contra o Wikileaks, o sentimento de defesa da vida. “Revelar a
identidade de centenas de pessoas que colaboraram com a coalizão [liderada
pelos EUA] no Afeganistão é altamente perigoso. Não seria difícil para o Taleban
e outros grupos armados usar tais documentos para compor uma lista de alvos em
ataques mortais”, diz o texto. Ele serviu para que parte da mídia apontasse o
“isolamento crescente” do Wikileaks. Entre os que acompanham em mais detalhes a
conjuntura internacional, porém, a postura era previsível. Diversas análises
independentes têm apontado a forte relação dos RSF com a diplomacia
norte-americana – em especial com algumas de seus projetos e personagens mais
controversos [veja o verbete sobre os RSF (português, inglês) na Wikipédia].
Que pode haver de tão perturbador (para Washington) nos
15 mil documentos? Segundo o jornal britânico The Guardian, que teve acesso a
parte do imenso material reunido pelo Wikileaks, pode tratar-se de “um arquivo
de milhares de telegramas, enviados pelas embaixadas dos EUA em todo o mundo,
nos quais se trata de comércio de armas, encontros secretos e opiniões não
censuradas de outros governos”. Em outras palavras, revelações capazes de
abalar governantes e políticos que se aliaram, em todo o mundo, às principais
iniciativas geopolíticas e militares de Washington, nos últimos anos — em
especial no período Bush.
No fim-de-semana, o australiano Julian Assange, editor
do Wikileaks, afirmou em entrevistas em Londres e Estocolmo que o conteúdo
deverá ser publicado num período de “duas semanas a um mês”. Segundo ele, a
equipe de voluntários do site está revisando “linha por linha” os arquivos
vazados. A triagem visaria, em especial, remover informações que possam ameaçar
a segurança pessoal de personagens citadas. Também haveria meios de imprensa
ajudando a interpretar e resenhar o material, embora Assange tenha preferido
não nomeá-los.
Para driblar uma eventual tentativa do Pentágono de
destruir os documentos, ou colocar o site fora do ar (e talvez para proteger a
si mesmos), os responsáveis pelo Wikileaks adotaram um procedimento
sofisticado. Há cerca de duas semanas, disponibilizaram um imenso arquivo (o
“insurance.aes256″, de 1,4Gb), que supostamente contém toda a base de dados
relativa aos vazamentos passados e futuros que perturbam o Pentágono. O
material está blindado por criptografia, mas os apoiadores do site foram
estimulados a baixá-lo. A esperança é que, difundido dessa forma, torne-se
indestrutível. Para que seja aberto, por qualquer um de seus possuidores, basta
que o pessoal do Wikileaks, sentindo-se ameaçado, divulgue a senha de
desencriptação.
Embora a história assemelhe-se, em alguns de seus
aspectos, ao enredo de um filme sofisticado de espionagem, ela envolve uma
batalha política de enorme importância. O empenho do governo Obama em tentar impedir a divulgação
dos documentos sugere que estão em jogo informações muito delicadas não apenas
para seu antecessor, mas para as políticas dos Estados Unidos, de forma geral.
Felizmente, o Wikileaks parece não se intimidar. No fim-de-semana, ao responder
às críticas dos conservadores e do RSF, Julian Assange afirmou: “Temos um dever
em relação aos mais diretamente afetados pelo material: o povo do Afeganistão e
os rumos desta guerra, que está matando centenas de pessoas a cada semana.
Temos um dever em relação ao registro da História, sua precisão e integridade”.
E foi adiante: “se os responsáveis pela defesa dos Estados Unidos querem ser
vistos como promotores da democracia, eles devem proteger o que os fundadores
de sua nação consideravam o valor central: a liberdade de expressão”.