Não me lembro se essa opinião causou algum espanto
na mídia, em geral tão atarefada em contar o dia-a-dia de políticos,
traficantes e personagens da própria mídia. Não sei dizer se teve algum impacto
inibidor em alguém que, naquela época, apenas começava seus primeiros poemas ou
qualquer coisa. Se João Cabral
estava cansado, qualquer um poderia estar.
Outro poeta, Haroldo de Campos, instigado a
declarar-se, foi à imprensa dizer que só raramente escrevia poemas. De um tempo
qualquer para frente, levava meses até surgir a idéia de algum - e daí a
escrevê-lo... João Cabral e Haroldo de Campos não voltaram à imprensa para
dizer: - Pessoal, eu disse aquilo, mas não me leve ao pé da letra, nem tão a
sério. Na verdade, mesmo cansado, ainda que as idéias demorem a invocar
métricas e frases, continuo a escrever, porque isso, escrever, é quase
essência, se de fato não é minha essência.
Disseram o que disseram e continuaram a fazer o de
sempre.
Só me lembrei disso porque reli uma reportagem
sobre o escritor J. D. Salinger
(cito-o em muitas ocasiões, não se espante daqui para frente). Desde os anos
60, Salinger interrompeu qualquer contato com a imprensa. Uma das alegações
possíveis - e não fora ele quem a disse - é que o sucesso e a personalidade
permanentemente exposta ao público e à mídia afetaram sua vida. Dessa maneira,
não criava o que desejaria criar. Pouco tempo depois, parou de publicar coisas
novas e seus editores limitaram-se, apenas, a fazer edições de três dos seus
quatro livros, incluindo O apanhador no campo de centeio.
Salinger não disse: estou cansado de escrever.
Tampouco disse que não poderia escrever o que pretendia escrever à luz de
tantos holofotes e solicitações de opinião e interpretações, como era
diariamente invocado a ser/fazer. Logo depois, os repórteres passaram a
bisbilhotar o quintal de sua fazenda, com a autoridade autoproclamada de quem
tudo pode transformar de privado em público, para flagrar o escritor diante de
sua máquina de escrever, para anunciar: novo livro de Salinger à vista. Ou
encontrá-lo arando a terra, para dizer: Salinger não escreve mais (qualquer
coisa é notícia quando se oferece aos leitores não a realidade em permanente
movimento, apenas o detalhe que deve servir e significar ilustração e
sobressalto ao dia-a-dia de cada um. Quanto a isso, Umberto Eco, em seu Pós-escrito a O Nome da Rosa, escreveu:
"me recuso a responder perguntas ociosas. Do tipo: sua obra é aberta ou
não? Sei lá, isso é problema seu, não meu".).
O contrário de que Salinger queria. O contrário do
que Eco espera. Salinger apenas decidiu ficar distante da cena pública, criou
para si uma reserva de proteção e transformou-se em um dos mais privados
cidadãos americanos, frequentemente ameaçado de violação - não apenas pela
mídia: também outros cidadãos querem estar com ele para, depois, contar na
mídia que estiveram com ele (revelando-lhe ao público?). Uma namoradinha de
meses fez isso. E sua filha não deixou por menos. Encontramos nesses relatos o
que encontraríamos na vida de qualquer um de nós: as sobras do dia-a-dia que,
de fato, deixam presença. As nossas opiniões e fantasias não são maiores que o
correr dos dias. E a inocência dos relatos, a insistência e revelação dos fatos
tragicamente cotidianos como enfadonhos e desinteressantes - Salinger vê
televisão, ara a terra, faz bolinhos de carne de carneiro, usa remédios
homeopáticos... -, anunciam que o mito se desnuda e parece normal, tão comum
que precisamos ver nele as ranzinzices e humores como formas de justificar que
mais um candidato a deus, objeto de fabricação da mídia, se vai.
Salinger não disse: parem de escrever, parem de
aparecer na mídia. Nem mesmo disse: não farei mais nada disso. Apenas
ausentou-se. João Cabral não disse: parem de escrever. Menos ainda disse Haroldo de Campos. Disse apenas: com o
passar do tempo, os poemas se demoram a chegar para mim. E nós devemos aprender
que a vida de cada um inclui as suas idéias, servindo para nós como interesse
pelo outro, não como espelho.