A ÍNDIA E SEUS IDOSOS

domingo, 18 de julho de 2010

Envelhecer na Índia é o mesmo que deixar de servir. Os velhos não interessam, são um fardo de que a família se desembaraça, sem remorsos. Mas nem os próprios se queixam. Como estranhar o que é aceite como natural?Aos poucos, as ruas de Calcutá perdem os seus mistérios. Em cada esquina começam a morar caras que se cumprimentam todos os dias. O Mohammad espera sentado no seu riquexó por um cliente.

A ÍNDIA E SEUS IDOSOS


Vou buscar dois “chai” na loja do Govindra e sento-me ao lado do Mohammad. O Mohammad é idoso. Não é assim tão velho, mas para o filho que ele criou, casou e deu uma vida é velho e inútil o suficiente para ser posto na rua. Quando a sua mulher morreu, tornou-se uma carga de trabalhos para a nora. Uma nora desejosa de uma vingança pelo suplício que a fizeram passar, provavelmente. Por isso, o filho do Mohammad não lhe abre a porta, não lhe dá um prato de arroz. Poderia estar horrorizado com a vida do Mohammad, mas não. Ele mesmo diz que é assim que tem que ser. Ele mesmo diz que é normal ser obrigado a puxar o seu riquexó dobrado pelos ossos macerados. O Mohammad pode até ser muçulmano, mas nem isso o liberta de uma sina indiana. Para a família que o enxotou, já está morto desde o dia em que saiu de casa. Para ele, que vive no seu riquexó, que faz dele casa e mala aviada para o resto da vida que tem, há uma teia de desejo de revê-los, de saber como estão e o que fazem.

Em nenhuma parte do mundo é fácil envelhecer, por mais sabedoria que cada ruga acumule. Ser velho é ser o animal de estimação que já anda lá por casa a muitos anos, a quem se põe comida no prato, a quem se leva a passear para desentorpecer as pernas e que, quando chegam as férias e as festividades de gente que ainda não precisa de um braço para caminhar, são empurrados de canto em canto acabando muitas vezes num depósito ou numa cama de hospital com o olhar fixo num teto de anonimato. A tudo isto a Índia acrescenta o conceito de inutilidade. Um velho é um ser inútil. Assim lhes ensinaram em pequenos, assim cresceram e assim envelhecem, crendo-se inúteis. Ambicionam ter filhos do sexo masculino para que um dia mais tarde tenham uma casa onde ficar, onde trabalhar como escravos domésticos gratos pelo teto que construíram. Todos o sabem e todos repetem o mesmo ciclo. É sempre a mesma vida de ombros encolhidos à espera do dia em que já nem para as funções da casa servem. Mesmo que padeçam de uma incapacidade temporária, é certo que o futuro será o abandono numa estação de comboios recheada de mãos que dão esmola. Um abandono de compaixão.

Outros há que, compreendido o fim da sua missão terrena, decidem libertar o mundo do peso da sua vida. Alguns, como os fundamentalistas da não-violência, os Jainistas, iniciam um jejum até a morte sempre com uma pancadinha nas costas, que estão a ir muito bem e que já falta pouco para deixarem de ser um fardo para as restantes formas de vida.

O Mohammad ri. Não se lamenta. Como poderá ter pena se já não lhe resta nada do que foi? Este é o traço mais budista de toda a Índia. Se aceita a perda desde que se nasce. Vive-se feliz. Envelhece-se sem sofrer pelo que se perdeu. A Índia é um reino de antônimos, cruel e comocionada, viciosa e virtuosa, inerte e inquieta, dolente e divertida, que nos agonia e que nos apaixona. E que nos faz voltar. Sempre.


Autor: James Dollinger
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Existe 2 comentários para esta publicação
domingo, 18/7/2010 por Sonia Maria Nunes da Silva
idosos hoje moços ontem, moços hoje idosos amanhã
conheço uma mãe com 05 filhos que se sacrificou para a formação acadêmica dos filhos e agora na velhice somente pode contar com uma filha que se sobrecarrega no trabalho e emocionalmente pela mãe. Os outros filhos nem estão aí. Vamos em frente.
sábado, 17/7/2010 por Aparecida Mendes/ Rio de Janeiro
IDOSOS NA ÍNDIA
Eu não estou lendo muita novidade em relação a envelhecer...; mas essa da Índia, doeu no meu coração. Sinceramente fiquei triste...
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