Vou buscar dois “chai” na loja do Govindra e sento-me
ao lado do Mohammad. O Mohammad é idoso. Não é assim tão velho, mas para o
filho que ele criou, casou e deu uma vida é velho e inútil o suficiente para
ser posto na rua. Quando a sua mulher morreu, tornou-se uma carga de trabalhos
para a nora. Uma nora desejosa de uma vingança pelo suplício que a fizeram
passar, provavelmente. Por isso, o filho do Mohammad não lhe abre a porta, não
lhe dá um prato de arroz. Poderia estar horrorizado com a vida do Mohammad, mas
não. Ele mesmo diz que é assim que tem que ser. Ele mesmo diz que é normal ser
obrigado a puxar o seu riquexó dobrado pelos ossos macerados. O Mohammad pode
até ser muçulmano, mas nem isso o liberta de uma sina indiana. Para a família
que o enxotou, já está morto desde o dia em que saiu de casa. Para ele, que
vive no seu riquexó, que faz dele casa e mala aviada para o resto da vida que
tem, há uma teia de desejo de revê-los, de saber como estão e o que fazem.
Em nenhuma parte do mundo é fácil envelhecer, por mais
sabedoria que cada ruga acumule. Ser velho é ser o animal de estimação que já
anda lá por casa a muitos anos, a quem se põe comida no prato, a quem se leva a
passear para desentorpecer as pernas e que, quando chegam as férias e as
festividades de gente que ainda não precisa de um braço para caminhar, são
empurrados de canto em canto acabando muitas vezes num depósito ou numa cama de
hospital com o olhar fixo num teto de anonimato. A tudo isto a Índia acrescenta
o conceito de inutilidade. Um velho é um ser inútil. Assim lhes ensinaram em pequenos,
assim cresceram e assim envelhecem, crendo-se inúteis. Ambicionam ter filhos do
sexo masculino para que um dia mais tarde tenham uma casa onde ficar, onde
trabalhar como escravos domésticos gratos pelo teto que construíram. Todos o
sabem e todos repetem o mesmo ciclo. É sempre a mesma vida de ombros encolhidos
à espera do dia em que já nem para as funções da casa servem. Mesmo que padeçam
de uma incapacidade temporária, é certo que o futuro será o abandono numa
estação de comboios recheada de mãos que dão esmola. Um abandono de compaixão.
Outros há que, compreendido o fim da sua missão terrena, decidem libertar o mundo do peso da sua vida. Alguns, como os fundamentalistas da não-violência, os Jainistas, iniciam um jejum até a morte sempre com uma pancadinha nas costas, que estão a ir muito bem e que já falta pouco para deixarem de ser um fardo para as restantes formas de vida.
O Mohammad ri. Não se lamenta. Como poderá ter pena se
já não lhe resta nada do que foi? Este é o traço mais budista de toda a Índia. Se
aceita a perda desde que se nasce. Vive-se feliz. Envelhece-se sem sofrer pelo
que se perdeu. A Índia é um reino de antônimos, cruel e comocionada, viciosa e
virtuosa, inerte e inquieta, dolente e divertida, que nos agonia e que nos
apaixona. E que nos faz voltar. Sempre.