Após milhares de quilômetros rodados e muita fumaça (de
carburador!, de carburador!) queimada, o sujeito decidiu separar-se do veículo,
que havia se tornado um trambolho no complicado trânsito parisiense. Com dor no coração, colocou um anúncio nos classificados do jornal. Tratou de ser
minucioso e sentimental na descrição. Afinal, não era apenas um carro, era uma
relíquia, um verdadeiro relato ambulante de uma passada época de sonhos.
Atraídos pela imperdível oportunidade, os interessados
não tardaram a ligar. Alguns barganhavam, outros queriam marcar visita para
conhecer aquela suposta maravilha, e havia ainda os que pediam detalhes
específicos sobre a mecânica, o consumo e tudo o que todo mundo quer saber na
hora de comprar um carro de segunda mão, mesmo que muitas vezes nem saiba o que
está perguntando.
Ali pelo fim do dia o telefone soa mais uma vez. A voz
confiante do outro lado não deixou dúvidas de que o negócio estava fechado.
- Passo aí amanhã pra buscá-la.
- Não quer nem ver antes?
- Não. Ela é minha.
A euforia pela venda praticamente decidida, somada à
tristeza pela iminente despedida de um objeto que certamente deixaria saudades,
não durou muito tempo. Alguns minutos depois, o aparelho toca novamente.
- Escuta aqui. Quem você pensa que é, hein?
O vendedor e pai do meu amigo não entendeu tchongas.
- Hã?
A voz brava continuou.
- Desculpa. Mas, veja bem, como podia saber que ele era
cego?
- Pois ele é.
- Sinto muito pelo transtorno e por ele também, que sem
a compra vai ficar a ver navios.
- O quê? Tá de gozação com a minha cara?
- Não, eu disse que ele não vai ficar a ver navios. Ou
melhor, vai ficar a não ver navios. Quer dizer, vai navegar a ficar vendo…
O cidadão desligou na cara, bufando. Menos de um minuto
depois, a campainha do telefone é ouvida de novo.
- Olha só, aqui é o cego. E sou eu quem decido o que
quero comprar ou não. Dinheiro eu tenho. Você quer vender o carro ou não quer?
- Quero, claro.
- Então vou passar com uma amiga amanhã de manhã pra
pegar.
- Tá bom. E sei que não é meu problema, mas abre o olho
com o seu pai, viu?
- Hã?
- Ops, nada.
Na manhã seguinte, o comprador e a sua colega batem à
porta da casa. De fato, o sujeito não enxergava absolutamente nada, mas estava
determinado a fechar o negócio. Tateou a lataria da Kombi, sentiu o VW da
frente, acariciou os faróis, chutou os pneus, alisou os vidros, apalpou os
bancos de couro, sentou na posição do motorista, virou o volante para os dois
lados, pisou nos pedais, encaixou uma ou duas marchas, girou a chave, apertou a
buzina, ligou o rádio e desceu do carro mais do que satisfeito.
- É perfeito!
Guardando no bolso o cheque pelo pagamento, o pai do
meu amigo dirigiu-se à acompanhante do cego.
- É você quem vai dirigir, né?
A moça não falou nada.
- Ei, perguntei se é você quem vai dirigir o carro.
Continuou sem resposta, até o cego intervir.
E os dois montaram na Kombi azul felizes da vida,
levando adiante o destino psicodélico daquele veículo.
Daniel
Cariello, editor da revista Brazuca, é colaborador regular da Biblioteca Diplô
/Outras Palavras. Escreve a coluna Chéri à Paris, uma crônica semanal que vê a
cidade com olhar brasileiro.