ERA UMA VEZ uma cidade condenada a desaparecer da
memória dos homens, levada pelo pó e submergida em escombros, após cem anos de
fervorosa solidão. E era uma vez uma cidade que jamais pôde desaparecer da
memória dos homens, porque a sua ruína seria a ruína do livro, e o livro nunca
esteve a ela predestinado. O autor, ao acabá-lo, confessou que desconhecia se
tinha em mãos um romance ou um quilo de papel. E mais tarde acrescentou que se
sentia “cansado” dele, que não passava de um volume superficial cujo sucesso se
devia a um conjunto bem afinado de “truques de escritor”.
Que Gabriel García Márquez tenha renegado a sua
primeira grande obra não é novidade para ninguém. Mas a história do processo
que levou à sua conclusão, sinuosa e romanesca — incluindo o episódio em que o
colombiano queima os 40 cadernos de notas, sob o argumento de que mostrá-los
seria como “ser apanhado de calças curtas” — poderia ter-se perdido para sempre
se não fosse pela obsessão de um professor de iteratura britânico em tornar-se
biógrafo oficial do escritor. Gerald
Martin demorou 17 anos para construir o livro “Gabriel García Márquez — Uma
Vida”, agora traduzido ao português. Em 690 páginas nos é contada a vida e a
obra, os meandros políticos, os segredos familiares, a infância atribulada, a
idade adulta, com a sua treva e a sua luz, a intrínseca luta de um fabulador e
jornalista que, ao travar conhecimento com o seu biógrafo, avisou-o logo: “Não
me obrigue a fazer o seu trabalho.”
Gerald Martin levou a advertência ao pé da letra e
entrevistou mais de 300 pessoas, desde a família ao próprio Fidel Castro.
Rastreou também as origens do escritor, da natal Arataca às cidades para onde a
família se mudou por capricho do pai, Gabriel Elígio, e a relação com os avôs
maternos que o criaram até aos dez anos, especialmente com o coronel Nicolás
Márquez, combatente na mítica Guerra dos Mil Dias. Nesta primeira parte, há uma
mãe que chega de trem para rever o primogênito; há uma criança corroída pela
timidez que cresce à margem dos pais; há irmãos e um pai que ela não conhece
que a arrancará do lar ao qual estava habituada. García Marquez, Gabito, vai
descobrir o mundo, isto é, o resto da Colômbia, deixando a luminosidade da
Costa rumo à escura Bogotá, onde os poetas, engravatados e diletantes, se
reúnem nos cafés. Os amigos de então nunca esqueceram a figura do “costeño” a
entrar num desses
antros vestido com roupa descontraída, piscando o olho à empregada e
perguntando-lhe: “Esta noite?” Pensaram estar perante uma “causa perdida”.
Rapidamente
se aperceberam do contrário. Ao primeiro texto que García Marquez assinou, aos
21 anos, para o jornal “El Espectador”, o editor falou no “nascimento de um
escritor extraordinário.” Era quase como a transformação (consciente, involuntária)
de Gregorio Samsa na “Metamorfose” de Kafka, que ele leu e releu como uma
bíblia, na tradução de Jorge Luís Borges.
Existiu um momento exato para García Márquez se tornar definitivamente nele
próprio: a viagem que empreendeu com a mãe, Luísa, rumo a Arataca, para vender
a casa que pertencera aos avôs: “O que me aconteceu foi que me apercebi de que
tudo o que tinha acontecido na minha infância tinha um valor literário que eu
só agora apreciava.” Nessa época, além de kafkiano, Gabo era admirador de Virginia
Woolf e William Faulkner, cantante de boleros, frequentador de bordéis, eterno
estudante de Direito, jornalista em apuros econômicos que vivia numa ‘casa de
meninas’ quando começava a rabiscar a primeira novela, “A Revoada”, sobre a
qual viria a dizer: “Isto não está mau, mas vou escrever uma coisa que será
mais lida que o ‘Quixote’.”
O menino
de olhar temeroso é agora o jovem de ambição desmedida que aspira a ser um
segundo Cervantes. Não tarda converter-se-á no repórter enviado às entranhas do
seu país, desenterrando histórias que lhe valeram ameaças de morte. Numa das
suas mais importantes reportagens, conduz uma longa entrevista com um
marinheiro que sobreviveu durante dez dias à deriva no mar. Ele próprio estava
prestes a partir para uma deriva de três anos na Europa: em Roma estudou
cinema, em Paris acossaram-no a pobreza e o amor, na Europa de Leste sentiu
desapontamento e vazio: “Perdemos a nossa inocência”, teria comentado. No
livro, fica explícito que esse sentimento engloba toda a experiência européia.
A começar pela paixão, na capital francesa, por Tachia Quintana, de quem chegou
a esperar um filho. A ruptura terá sido brusca e dolorosa, a relação marcada
pela fome e pela escrita (paradoxos do ofício) de “Ninguém Escreve ao Coronel”.
A vida de
García Márquez confunde-se com a da América Latina. Em Caracas, para onde rumou
a convite de Plínio Mendoza (que foi embaixador da Colômbia em Lisboa) para
integrar o staff da revista “Momento”, uma premonição o fez saber que,
instantes depois, bombardeiros descarregariam sobre o palácio presidencial,
levando o ditador Pérez Giménez ao exílio. É deste tempo a intuição inaugural
do “Outono do Patriarca” e o casamento com Mercedes Barcha, a mulher que
escolheu aos 13 anos. É deste tempo, também, a queda de Batista em Cuba e o
início de uma longa relação com aquele país e com o seu líder, Fidel Castro.
Plínio e Gabo presenciaram o julgamento dos apoiantes de Batista, acusados de
crimes de guerra pela revolução. Mais tarde, aceitaram fazer parte de Prensa Latina,
a agência noticiosa cubana. García Márquez trabalharia para ela em Bogotá e em
Nova Iorque, onde se demitiu e de onde empreendeu, sem dinheiro e com um filho
para sustentar, a lenta caminhada para o México (por terra, Mercedes, Gabo e o
pequeno Rodrigo demoraram 15 dias a chegar). Este é o país que o acolhe nos
anos subsequentes. Ali vivia quando recebeu o Nobel.
É
interessante descobrir que a primeira frase de “Cem Anos de Solidão” lhe surgiu
enquanto conduzia rumo a umas férias em família. E que, de imediato, deu meia
volta, certo de que por trás da frase se escondia o livro inteiro. Era o início
de um ano dominado pela saga dos Buendía e o fim de um longo processo: esta era
a obra que há 18 anos sonhava escrever. García Marquez parou de trabalhar. Fechava-se
num quarto que apelidara de “Caverna da Máfia” e martelava a sua Olivetti das
8h30 às 14h30, envergando um macacão de operário. Mercedes pediu crédito ao
senhorio, ao açougue, à mercearia. Empenhou televisão, frigorífico, jóias,
rádio. Ao acabar, as 490 páginas deviam ser enviadas à Editorial Sudamericana,
em Buenos Aires. Mas a encomenda custava 82 pesos e Mercedes só tinha 50 na
carteira. Seguiu metade. Para o resto, desfizeram-se dos últimos eletrodomésticos.
Foi um
sucesso anunciado, que conquistou a fama ainda antes da publicação, em Maio de
1967. Passado pouco tempo, Gabo declarava na imprensa: “Quando acabo de
escrever um livro, ele deixa de me interessar.” Ao mudar-se para Barcelona, em
finais daquele ano, é já “O Outono do Patriarca” que lhe ocupa o pensamento.
Quer renovar-se: “Não quero imitar-me burlescamente.” Na Espanha franquista,
privará com Pablo Neruda e, turbulentamente, com Mario Vargas Llosa. Nesta
fase, há quem recorde García Márquez como “apolítico”, embora o escritor espanhol
Juan Marsé tenha testemunhado o contrário. Marsé fazia parte do júri do 4º
Concurso da União de Escritores e Artistas de Cuba, que tencionava premiar o
poeta Heberto Padilla, alegadamente “contra-revolucionário”. Desencadeou-se o
conflito que levantaria o véu sobre a real posição do regime cubano a respeito
da liberdade de expressão. Para exortar os jurados a mudarem de opinião, Fidel
deteve-os durante seis semanas. E quando Marsé relatou o caso a García Márquez,
este explodiu. Conta Marsé: “Disse-me que eu era um idiota, que não percebia
nada de literatura nem de política. A política vinha sempre em primeiro lugar.”
Ao
concluir “O Outono do Patriarca” — sobre um ditador na solidão do poder — fez
saber que não voltaria a publicar enquanto Pinochet não fosse expulso. Visitou
Portugal na hora da Revolução de Abril, acompanhou as tropas cubanas a Angola,
manteve o apoio a Fidel Castro mesmo se a repressão e a censura lhe manchavam a
reputação, mas disse que não poderia viver em Havana: “Sentiria a falta de demasiadas
coisas. Não conseguiria viver com a falta de informação.” No seio das suas
amizades estaria o socialista Felipe González e o General Omar Torrijos, o
ditador populista do Panamá. Gabo não se deteve a explicar contradições. Certo
é que, no discurso perante a Academia Sueca, o vencedor do Nobel em 1982
atacava a inabilidade européia para compreender os problemas da América Latina.
No dia da entrega do prêmio, vestia um liquiliqui, traje tradicional caribenho
de cor creme, com sapatos pretos, num rombo ao protocolo que a Colômbia — de
resto, o país onde a sua fama mais tardou em instalar-se — não esqueceu tão
cedo. Começava o seu próprio caminho no poder, segundo a tirada de Fidel: “Sim, claro que García Márquez é
como um chefe de Estado. A única questão é: de que Estado?”
O escritor
ainda haveria de dar à estampa “Crônica de Uma Morte Anunciada”, “O Amor nos
Tempos do Cólera” e “O General no Seu Labirinto”; haveria de ousar a
autobiografia em “Viver para Contá-la” ou publicar “Memória das Minhas Putas
Tristes”; haveria de fundar a Escola Internacional de Cinema e Televisão de
Havana, sofrer dois cânceres, assistir ao recrudescimento da violência no seu
país e às execuções numa Cuba que continuava a defender. Em 1997, aos 70 anos,
adquiriu a revista “Cambio”, a mais influente na Colômbia, e voltou para uma
redação. A memória começava a falhar-lhe. Conta Gerald Martin que, no seu
penúltimo encontro com o escritor, na Cidade do México, Gabo disse em tom
melancólico: “As pessoas não podem ficar decepcionadas, não podem esperar mais
de mim, pois não?” Era o medo de que a sua obra desaparecesse como Macondo, a
cidade-personagem para a qual a morte estava escrita. Mas que, contra todos os
vaticínios, sobreviveu.