SIRENES, gritos, bombas explodindo... o hino... antiaéreas, mais gritos... o hino... helicópteros... Jimi Hendrix arrancava da guitarra o horror da guerra do Vietnam misturado com o hino nacional dos Estados Unidos, o ‘The Star-Spangled Banner’. Pouca gente restava frente a ele naquela manhã do dia 18 de Agosto de 1969, mas os que restavam estavam petrificados. A ‘missa’ tinha terminado em paz por volta das 6h com a Paul Butterfield Blues Band a tocar ‘Everything’s Gonna Be Alright’, e 400 mil apóstolos tinham partido em todas as direções para levar a palavra a todo o mundo. Às 7h, entraram os ‘palhaços’ Sha Na Na (os Madness/Housemartins da época), mas às 8h30 se uma pomba branca atrasada tivesse sobrevoado Bethel, visto o cartaz do festival e achado que podia pousar no braço da guitarra de Hendrix, teria morrido electrocutada.
Cheira a napalm quando a câmara começa a percorrer a
paisagem em frente ao palco. O cenário é pós-apocalíptico. Lixo por todo o
lado, um rapaz sentado no chão, com um par de muletas pousadas a seu lado,
raspa com os dedos um pedaço de melancia que tenta comer, outros pegam em sacos
e começam a recolher o lixo. Alguém faz uma fogueira com pedaços de cartão,
passa uma garota com um pé ferido e embrulhado num plástico, outra tem um braço
engessado. E a guitarra, a mais ácida das guitarras, sempre a cortar o ar.
Numas tábuas está escrito “we are one”. Uma garota com um guarda-chuva colorido
e cheio de lama dança sozinha.
E se Michael Lang tivesse conseguido realizar o seu
sonho de Woodstock ser encerrado por Roy Rogers cantando ‘Happy Trails’? E se
não tivesse chovido? E se o palco, que parece um navio no meio da tempestade,
tivesse naufragado? E se a polícia tivesse prendido alguém? E se a população de
Bethel não tivesse permitido o festival, como antes tinham feito os habitantes
de Wallkill? E se tudo tivesse corrido mal? Mas tudo correu mal e por isso é
que tudo correu bem, porque 400 mil pessoas sobreviveram três dias na
adversidade e mantiveram um clima de paz. Se a geração mais velha, um mês
antes, tinha deixado a sua marca na Lua, esta era a resposta da geração mais
nova, a deixar a sua marca na Terra. Dois grandes passos para a Humanidade já
fazem um caminho.
Quarenta anos
depois de esse caminho ter sido iniciado, a 15, 16 e 17 de Agosto de 1969,
chega mais um aniversário para nos lembrar que Woodstock se tornou um negócio
que não pára de render. No primeiro dia, quando os tapumes foram derrubados e a
organização anunciou que a partir daquele momento o festival era de graça, um
jornalista interrogou Artie Kornfeld, um dos produtores, e a resposta que
recebeu foi: “As pessoas que investiram dinheiro vão ficar sem ele, mas a
música é mais importante que o dólar.” Pois bem, a Live Nation Merchandise
acaba de comprar os direitos de produzir produtos usando o nome Woodstock
(T-shirts, bonés, posters, calendários, etc.) e anunciou que espera vendas
entre 50 e 100 milhões de dólares. Com o 40º aniversário saíram livros, DVDs,
caixas de discos, o filme de Ang Lee, e na Broadway está sendo produzido um
musical inspirado no livro de Michael Lang “The Road to Woodstock”, e muito
ficou por editar para poder alimentar futuros aniversários. A ‘yellow brick
road’ para Woodstock começou a ser trilhada nos anos 50,quando a televisão
tornou presente a realidade sociopolítica da América, a música despertou na
maioria dos adolescentes um sentido de intervenção cívica e política e a
beatlemania tornou essa geração protagonista da História.
Os
anos 60 chegam e a imprensa começa a reproduzir lemas da rua como “Turning on,
tuning in and dropping out”, “não confies em ninguém com mais de 30 anos”,
“impeach Johnson” ou “legalizem a erva”. O “San Francisco sound” tornava-se a
banda-sonora, o Haight-Ashbury, o local para se estar (ali abriu em 1966 a
primeira loja psicodélica) e o novo era ser hippie. Nascia a “era de Aquarius”.
Em “Festival! The Book of American Music Celebrations”,
Jerry Hopkins aponta Janeiro de 1967 como o ponto de partida, com a realização
de um Be-In, uma reunião das tribos, no Golden Gate Park de San Francisco.
Havia comida de graça, Allen Ginsberg e Gary Snyder conduzindo uma multidão com
4 mil pessoas, os Hells Angels tomando conta de tudo, Timothy Leary abençoando os
presentes, os Quicksilver Messenger Service e os Grateful Dead tocando. Em
Junho acontecia aquele que ficaria para a história como o primeiro festival de
rock, o Fantasy Fair and Magic Mountain Music Festival, no cimo do monte
Tamalpais, perto de San Francisco.
Duas semanas depois, de 16 a 18 de Junho, chegava o
Monterey International Pop Festival. A idéia original do produtor Alan Pariser
era fazer uma versão pop do festival de San Remo, mas Paul Simon sugeriu que
todos os músicos tocassem de graça e que os lucros fossem doados a instituições
de caridade. Foi criado um conselho diretivo composto por músicos e o festival
tornou-se num projeto de sonho. Toda mundo queria lá tocar de graça, todo mundo
queria ajudar. Impressionada pelo exemplo, a ‘Love generation’ pela primeira
vez compareceu em força e a polícia assustou-se ao ver 200 mil pessoas, mas
acabou rendida. “Pelo que vi este fim-de-semana, gostei muito destes hippies.
Fiz
muitos amigos, e já me prometeram uma visita guiada a Haight-Ashbury”, dizia o
chefe da polícia Marinello, com um pau de incenso preso na fita do chapéu.
Monterey foi o primeiro festival de música, flores e amor e antecipou dois anos
o que se tornaria famoso em Woodstock.
Mas “Monterey foi um monumento à inocência”, escreveu o
“The Los Angeles Free Press”, e a partir dali foi sempre a descer. Em 1969
explode a festivalmania. Craig Gilbert, produtor de “Sounds of Summer” para a
National Educational Television, diz que, numa estimativa conservadora,
realizaram-se 10 mil festivais de música nos EUA em 1969. Para os jovens
americanos, os festivais tornaram-se uma experiência comparável ao que é hoje
em dia uma viagem de fim de curso a Lloret de Mar. Em Denver, há lutas entre
motoqueiros, polícia e uma multidão que tentava derrubar os tapumes. No
Festival de Jazz de Newport, Rhode Island, a inclusão de um número
desproporcionado de grupos rock acabou com as cadeiras usadas para fogueiras e
o cancelamento dos Led Zeppelin. Em Santa Clara, Califórnia, o público invadiu
o palco por se sentir fraudado pelo miserável sistema de som. Em Devonshire
Downs, San Fernando Valley, um festival decidiu apropriar-se do nome Newport. O
Newport ’69 foi o maior desastre do ano em termos de violência (300 feridos,
entre os quais 15 polícias, e 75 detidos). O negócio dos festivais trouxe o mau
som, a má visibilidade, a falta de estacionamento, a falta de alojamento, as
más instalações sanitárias e os cartazes desequilibrados porque para contratar
um bom grupo os agentes impõem a contratação de dois ou três maus. Todos os
promotores prometiam um novo Monterey e talvez por isso poucos músicos
conseguiam receber algum cachê. A par disto surgiu a ‘moda’ de contratar gangs
de motoqueiros, como os Hells Angels, para fazerem a segurança dos festivais.
Como se sabe, a ‘moda’ iria fechar 1969 em tragédia com um ‘Angel’ matando a
facadas um homem em Altamont durante a atuação dos Rolling Stones.
Michael
Lang,
24 anos, ex-dono de uma loja psicodélica na Florida, ex-estudante de
administração de negócios, com alguma experiência na produção de festivais, e o
seu amigo Artie Kornfeld, 26, cantor, compositor, a trabalhar há anos na
indústria discográfica, viram num jornal um anúncio de “jovens com capital
procuram oportunidades de negócio”. Os jovens eram Joel Rosenman, 26,
licenciado em direito, e John Roberts, 24 (faleceu em 2001), dono de uma
empresa de investimento e que iria receber uma herança de 4 milhões de dólares
(em três partes, respectivamente quando fizesse 25, 30 e 35 anos).
Juntos decidiram realizar “um novo Monterey” em
Woodstock, a localidade onde residia Bob Dylan situada a duas horas de carro a
Norte de Nova Iorque. Como não havia um espaço disponível, mudaram-se para
Wallkill, ali perto, mas a população opôs-se. Acabaram na quinta do lavrador
Max Yasgur (1919-1973) em White Lake, Bethel. Mesmo assim, um cartaz no centro
de Bethel dizia: “Local people speak out. Stop Max’s hippie music festival. No 150,000 hippies
here. Buy no milk.”
60
mil bilhetes foram vendidos antecipadamente, mas a publicidade foi nacional.
Era inconcebível em 1969 ser hippie nos EUA e não ir à “exposição aquariana” de
Woodstock, um festival no campo, para celebrar o espírito hippie, com um grande
cartaz e perto de casa de Dylan. No máximo, a organização esperava 120 mil mas
apareceram 400 mil, e muitos não conseguiram lá chegar porque as estradas
estavam cortadas.
Como
resumiu Country Joe McDonald, “estas pessoas gostam de se reunir e de olhar
umas para as outras para terem a certeza de que existem”, ou como cantou no
palco Roger Daltrey, “welcome to the camp, I guess you all know why we’re
here”.
A organização tinha contratado 350 polícias de Nova
Iorque para ajudar ao controle de tráfego, mas o comando proibiu-os de
trabalhar fora da cidade. Assim, foi o caos no trânsito. Perdidas as estradas,
o festival perdeu as linhas de abastecimento. Na sexta-feira já não havia água,
comida nem assistência médica suficiente. A única via de acesso foi através de
helicópteros que transportavam músicos, médicos e mantimentos. No domingo, mais
de 4000 pessoas tinham recebido tratamento médico por problemas como mau LSD,
insolação ou pés cortados por vidro. Houve dois mortos (um atropelado por um
trator enquanto dormia e outro de overdose) e dois partos. A pouca polícia
dedicou-se a assegurar a sobrevivência da multidão, não a efetuar detenções por
posse de drogas ou atentados ao pudor. A população local acabou por perceber a
iminência de uma catástrofe e deixou de pedir dinheiro pelos alimentos. Muitos
passaram noites a fazer sanduíches e sopas para distribuir para um exército que
dizia ‘por favor’ e ‘obrigado’, que não causava estragos nem tinha irrupções de
violência.
Um
homem da terra diz para outro, espantado: “Junta 500 adultos e dá-lhes bebida e
sabes o que acontece?” ou, como dizia a dona Mildred Blank, dona de um motel,
“se isto fosse uma reunião de 500 rabinos e padres, de certeza que alguns
tinham sido presos”.
Um dos momentos chave do documentário que imortalizou o
festival é a entrevista a um casal de adolescentes que tinham acabado de chegar.
Vivem numa comunidade, têm uma relação sexual, mas não afetiva, foram para ali
juntos mas nada os prende um ao outro nem durante aqueles três dias. “A minha
mãe acha que eu vou para o Inferno”, diz ela; “o meu pai perguntou-se se eu
vivia num campo de treino comunista”, diz ele.
A construção do mito Woodstock foi imediata. Uma semana
depois o ativista político Abbie Hoffman já tinha editado um livro, “Woodstock
Nation”. A “Life”, a “Time” e a “Rolling Stone” fizeram edições especiais. A
“Time” chamou-lhe “o maior happening da história” e disse que podia vir a “ser
considerado um dos mais importantes acontecimentos políticos e sociais deste
tempo”. Para a “Rolling Stone” foi “a mais famosa e bem sucedida experiência de
paz e comunidade da década de 60”. Max Lerner, um colunista político, escreveu
que o festival “marcou um ponto de viragem na consciência que as gerações têm
umas das outras e de si próprias”. Antes de Woodstock a década não tinha nome,
depois até Charlie Brown ganhou um passarinho amigo chamado Woodstock.
A melhor explicação do fenômeno foi dada por Leo Lyons, dos Ten Years After: “Os
músicos não estavam à espera de nada. Extasiados como estavam limitaram-se a
tocar. E o público apareceu sem estar à espera de nada. Foi espontâneo, e a energia
estava lá.”