Uma noite em Cabul

domingo, 30 de agosto de 2009

O homem pousa a Kalashnikov e me revista os bolsos, percorrendo com os dedos, das calças aos calcanhares. “Tem a certeza de que não traz nenhuma arma consigo?” Na sala, outro guarda afegão observa a cena. “Só se for a câmara fotográfica”, digo-lhe, para descontrair o ambiente de ligeira desconfiança que está se formando ao meu redor.

Uma noite em Cabul



Estou de barba grande e trago um lenço no pescoço, enquanto ao meu lado passam dois nórdicos de cara lavados e com camisas engomadas, como se estivessem em Estocolmo.

Na segunda sala de segurança, uma cama encostada à parede tem ainda os lençóis desfeitos do último turno de vigilância. São nove da noite, e pensei em entrosar-me com a fauna internacional de Cabul, mas o enorme e arborizado pátio do L’Atmosphere parece desoladoramente vazio. O sábado é a pior noite da semana para se beber alguma coisa. O fim-de-semana para os expat (expa

triados) que trabalham no Afeganistão começa à sexta. O nosso domingo é o sábado deles. Só aparece quem é bebedor hard core ou, então, quem está afogado na solidão, o que não é difícil numa cidade sitiada pela guerra e pelo medo.

Num dos salões envidraçados, seis pessoas jantam a um canto, viradas de costas para o pátio, que está submerso em pequenos candeeiros de velas, no meio dos arbustos. Num patamar mais elevado, a piscina tem a água a meia haste, rodeada de sombreiros. Dois pequenos grupos bebem latas de Heineken a cinco dólares no balcão ao ar livre. Apresento-me a um dos clientes, Luc Mathiew, por coincidência um jornalista free-lance que escreve regularmente para o diário francês “Libération”. Está acompanhado por um funcionário de meia-idade da embaixada francesa. Luc espera ficar no país pelo menos durante um ano. “Decidi alugar uma casa aqui perto, no bairro.” Frequentar o bar faz parte do trabalho. Vão surgindo contatos informais capazes de facilitar autorizações e proporcionar, eventualmente, boas histórias para o jornal.

L’Atmosphere é o lugar  mais popular da micro vida noturna da cidade. O guia turístico da Lonely Planet dedicado ao Afeganistão descreve-o como uma espécie de bar universitário, cheio de jovens bonitos e solteiros das organizações de ajuda humanitária que vieram para Cabul por causa da guerra. “Se bem que, com o agravar do cenário, a proporção entre sexos desceu drasticamente para uma mulher por cada três homens”, queixa-se outro francês próximo do balcão, ao fim de três cervejas. “Isto está ficando feio.”

O meu primeiro contacto com o L’Atmo, como o local é tratado pelos clientes habituais, foi durante um passeio de reconhecimento, num domingo, vindo de um campo militar nos arredores da cidade, mas, no instante em que cheguei de táxi à Street 4, em Qala-e-Fatulah, depois de horas perdido sem conseguir me entender com o motorista em qualquer tipo de linguagem, percebi que o bar só abria às cinco da tarde e não pude conhecê-lo por dentro.

Foi um pequeno choque, de qualquer forma. Os guardas na casinha de madeira tiveram de repetir duas vezes que o lugar sobre o qual eu tinha lido era mesmo aquele muro tosco revestido de hescos — os cilindros carregados de pedras e areia com que os militares fazem as barricadas dos aquartelamentos —, onde pontuava um portão metálico com uma pequena viseira. Por fora, a alegada Meca do entretenimento de Cabul passa, sem dificuldade, por um departamento do Ministério da Defesa afegão.

Há uma paranóia generalizada com a segurança em Cabul. De dia ou de noite, a cidade habituou-se a viver em segredo, o que levou a que surgisse uma hotelaria camuflada para clientes ocidentais, os alvos mais apetecíveis para os atentados à bomba dos talibãs e para uma recente campanha de sequestros. Não há letreiros à porta dos estabelecimentos, como também não há números nas portas na capital do Afeganistão, nem placas com os nomes das ruas na maior parte das vezes. “Está mesmo à espera da bomba.” É preciso um mapa do tesouro para se chegar aos lugares. Foi a descoberta mais importante para a minha sobrevivência social em Cabul: uma companhia de táxis incaracterísticos, recomendada pela jornalista residente da “Time”, Aryn Baker, que passei a usar nas minhas deslocações. Os motoristas da Afghan Logistics falam inglês, conhecem de cor os locais onde os ocidentais gostam de ir e circulam discretamente pela miserável, caótica e poeirenta capital afegã, por entre as avenidas ocupadas por colunas militares e bandos de polícias, onde o arame farpado substituiu os canteiros de flores.

Alguns bairros, especialmente o mais rico de todos, Wazir Akbar Khan, tornaram-se prisões a céu aberto, com os seus muros de betão e centenas de pequenas casas de guarda do lado de fora dos portões. Wazir Akbar Khan beneficia da proximidade da green zone, o enorme perímetro que os americanos criaram para proteger a sua embaixada e o quartel-general da NATO, onde vive o comandante máximo para o Afeganistão, o general Stanley McCrystal. No bairro fica o único bar onde estive que tem a coragem de conservar uma pequena ardósia com o seu nome junto do portão metálico.

Quem me recomendou o Lounge Bar foi um inglês chamado Derek Trembeth, quando lhe pedi conselhos sobre onde ir à noite e depois de ter sido fortemente desaconselhado por ele a voltar a pôr os pés no L’Atmo. “Os vizinhos já sabem o que se passa ali. Está mesmo à espera que um talibã atire uma bomba por cima do muro.”

Dono de um humor refinado, humilhando sem distinção militares ingleses, franceses e americanos, Derek é um ex-militar britânico que fez a campanha da Guerra do Golfo, no Iraque. Trabalha para o príncipe multimilionário Aga Khan como responsável pela segurança de todos os investimentos da família no país, incluindo o alojamento mais luxuoso e caro de Cabul, o Serena. Não falamos, no entanto, do atentado com homens-bomba que fez seis mortos no hotel, em Janeiro do ano passado. Seria uma má forma de começar uma frutuosa amizade.

O Lounge Bar está no topo da lista de preferências de Derek. Daí se explica o meu reencontro casual com ele ao balcão de uma das salas interiores do restaurante-bar, com o seu humor fleumático a navegar já bem alto sobre os problemas de segurança do Afeganistão.

O bar está cheio. É quinta-feira à noite, véspera de feriado semanal. Joanne, a dona, explica-me que terei de pedir autorização aos clientes antes de fotografá-los. “Tenho amigos que foram despedidos porque as organizações para quem trabalhavam não gostaram de vê-los de copo na mão na noite de Cabul.” A ONU e as suas agências-satélite impuseram normas rígidas e decretaram um recolher obrigatório a todos os colaboradores, que têm de estar às 23 horas nos seus alojamentos, para evitar infortúnios e despesas desnecessárias.

Os contractors, funcionários das empresas de construção e logística que vão para onde vai a guerra, têm mais liberdade. Um pequeno grupo bebe cerveja ao balcão, não se importando com as fotografias. Um deles fala algumas palavras de português, que aprendeu em Moçambique. Chama-se Michael J. Arrighi e é coordenador de segurança para o Médio Oriente e Ásia da Lakeshore, uma companhia de engenharia que está a construir bunkers e outras instalações militares para o Exército americano. Tem um número de celular afegão e outro do Iraque, onde tem passado longas temporadas, desde 2004, a vigiar projetos de esquadras de polícia. Há muitos como ele. Lotação esgotada. Não há grandes diferenças entre o Lounge Bar e o L’Atmo. O mesmo esquema de segurança, com duas salas antes de se chegar ao pátio; o mesmo tipo de cardápio, com pastas, pizas e bifes; as mesmas velinhas nas mesas, para quando falham os geradores; e a Heineken a cinco dólares. O que os distingue é o tamanho e os horários mais permissivos do L’Atmosphere, que à quinta-feira se arrasta até a uma da manhã.

No meu regresso ao L’Atmo, a seguir ao jantar e sem a companhia de Derek, que se recusou a ir comigo, a lotação está quase esgotada. Os jipes acumulam-se na rua esburacada, denunciando a hora de ponta dos ocidentais. Um cliente tropeça na porta, à saída, encharcado em álcool.

Luc, o jornalista do “Libération”, não apareceu. Talvez tenha partido já para o Uzurgão, à procura dos seus refugiados. No grupo com quem acabo por me sentar, há muito da síndrome United Colors of Benetton. Chisa Katsuki, uma japonesa que trabalha na equipa de Internet do UNDP (United Nations Development Program), está com Deborah Smith, gestora da AREU (Afghanistan Research and Evaluation Unit), e com Timor Shaavar, investigador afegão formado em Cambridge. Um verdadeiro melting pot, embora nem toda a gente se arrisque a misturar-se assim. Os restaurantes dos tubarões. Os tubarões, como os embaixadores e os empresários de topo, não vão tanto aos bares. Preferem restaurantes com níveis ainda maiores de proteção. Um deles é o Bocaccio, que ocupa um edifício dentro do perímetro da green zone, ao lado da casa do ministro do Interior, o que implica passar por dois checkpoints permanentes no meio da rua.

O Bocaccio tem à entrada um arco de detecção de metais, como nos aeroportos, e cacifos para os clientes guardarem as suas armas. Há câmaras de vigilância viradas para vários pontos da rua e para as traseiras, onde uma porta dá um acesso mais rápido à embaixada americana. Parece a Europa lá dentro, com paredes cor de salmão, sofás de pele, sólidas cadeiras de madeira e guardanapos de pano.

Mulheres de calças justas e pequenos decotes servem à mesa. Mohammed Yousuf Rafik, o dono, explica-me que nenhuma das funcionárias é afegã. São do Turquemenistão. Ele costuma trazê-las para contratos de seis meses, ficando alojadas no próprio restaurante, num piso superior. “Não quero ninguém que consiga entender o que se fala à mesa”, diz Rafik. “Por isso tenho tantos embaixadores como clientes. Eles sabem que estão à vontade.”

Um primo de Hamid Karzai, vestido com um elegante shalwar kameez branco, janta numa mesa ao fundo com alguns ocidentais. Rafik conta-me que o familiar do Presidente do Afeganistão é sócio de uma empresa de segurança com americanos e costuma ir ao Bocaccio regularmente.

Rafik abriu o restaurante há três anos em nome da sua mulher, uma cidadã suíça, para evitar problemas com a justiça por vender vinho e uísque aos seus clientes num estado islâmico, onde o consumo de álcool é proibido por lei. É um empreendedor com a noção dos riscos que corre e, na verdade, ainda não foi capaz de se dedicar totalmente ao Afeganistão.

Todos os dias, o dono do Bocaccio viaja de manhã para o Dubai, onde tem uma agência de mão-de-obra para a indústria petrolífera, a Aramco Emirates, regressando ao final da tarde para gerir o restaurante em Cabul. São duas horas e meia de avião para cada lado, que lhe permitem ter um pé fora do país e fazer outra coisa, mais mundana: trazer bebidas alcoólicas diariamente consigo.

“Trago-as uma a uma”, confessa, orgulhoso, exibindo-me a sua garrafeira com a coleção completa das labels da Johnnie Walker: Red Label, Blue Label, Green Label, Gold Label. Se a marca de uísque descobrir que o homem que mais quilômetros faz no mundo por uma garrafa de Johnnie Walker está em Cabul, provavelmente convida-o para um anúncio. Se os talibãs não o sequestarem primeiro. Parecendo que não, sempre há uma guerra lá fora.

 


Autor: MICAEL PEREIRA
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