“Sacanas sem lei”

domingo, 30 de agosto de 2009

“Sacanas sem lei” é a nova maravilha de Tarantino. filme de época e de guerra sem paralelo no gênero é uma pura manifestação de fé no poder do cinema o registro é clássico e musculado, a saga também. Divide-se em capítulos, tem ambição literária. Assim mesmo, “Inglourious” com “u” e “Basterds” com “e”, à americana, com erros gramaticais no título original. “Sacanas sem Lei” é falado em francês, inglês, alemão e, lá para o fim, em italiano. Mistura atores de várias nacionalidades.

“Sacanas sem lei”


Não há aqui espaço para a experimentação de “À Prova de Morte”, penúltimo filme de Tarantino — o tom agora é diferente, mais sério, foi-se a histeria do gênio. “Sacanas sem Lei” foi feito por um cineasta todo-o-terreno que não tem medo dos gêneros: e, embora sejam de western-spaghetti os ambientes iniciais, tudo se torna sóbrio a partir daí. Depois, abrem-se as portas a um filme de vingança em que o cinema é uma arma de arremesso, e é com o cinema que Tarantino vai à guerra, ou seja: “Sacanas sem Lei” — é isto que queremos sublinhar — é um filme sobre o cinema. Talvez nem seja o mais belo de Quentin; não é, de todo, o mais siderante que realizou; mas parece-nos, desde a estréia de Cannes, que é o seu filme mais importante.

A inspiração veio de um série B italiano dos anos 70, “Quel Maledetto Treno Blindato”, de Enzo Castelari — mas “Sacanas sem Lei” não é um remake. Tarantino inventou um grupo de mercenários judeus. Durante a II Guerra Mundial, eles vêm dos EUA para a Europa com uma missão: chacinar nazis na França ocupada. O grupo é liderado pelo americano Aldo Raine (Brad Pitt), um ‘apache’ já com uma série de escalpes nazis no currículo. Ou seja: Tarantino não vinga só os judeus, consegue também arranjar maneira de vingar os índios. A Aldo Raine se junta um bando  de poliglotas e até uma estrela do cinema alemão, Bridget von Hammersmark (Diane Kruger), que passou para o outro campo e colabora agora com a Resistência. Há ainda Shosanna Dreyfus (Mélanie Laurent), uma judia francesa que sobreviveu por um triz aos nazis e, três anos depois, dirige uma sala de cinema em Paris sob nome falso. Acontece que essa sala, fruto de um acaso, receberá a estréia de um famoso filme de propaganda alemã. A fina-flor nazi vai lá estar, Führer incluído. Shosanna pensa num plano. Um plano cinematográfico que horrorizaria qualquer presidente de Cinemateca. Ela tem em seu poder as bobinas de 350 cópias de filmes em nitrato. E o nitrato, como às tantas se ouve, “arde três vezes mais depressa que o papel”.

 

ALDO RAINE (BRAD PITT) Dirigido pela primeira vez por Tarantino, Brad Pitt é o tenente Aldo Raine. Trata-se do líder dos “Basterds”, um grupo de judeus americanos que vem para a Europa com uma missão: chacinar as tropas de Hitler. É um especialista em desenhar cruzes suásticas nas testas dos inimigos com uma faca de mato. As suas ordens são claras: cada homem sob o seu comando deve trazer, pelo menos, 100 escalpes nazis. Os escalpes não vêm por acaso: é que, além do seu sotaque carregado do Tennessee, Aldo tem sangue índio nas veias. É por isso que lhe chamam “Aldo, the Apache”.


Mas é mais produtivo ficar num plano teórico do que falar do filme em si, da sua história e da ousadia da sua revelação. De resto, deixamos aqui uma descrição das personagens e, por elas, a sinopse está feita. Digamos para já que “Sacanas sem Lei” é um filme que, pela fé de Tarantino no poder do cinema, admite uma versão alternativa da história do século XX. Uma versão para salvar o mundo. Mas a muito de inesperado, sobretudo para quem associa Tarantino às cenas de ação de “Kill Bill” e “À Prova da Morte”, ou seja, a uma assinatura inspirada em violência. É que, se Tarantino é um grande cineasta, ainda é melhor argumentista, e desta vez transbordou de talento. E é com palavras — mais uma vez — que a guerra de Quentin é feita, não com rajadas de metralhadora, que, eventualmente, fecham longas sequências de diálogos de 20 minutos.

E eles falam, falam, falam... Pelas palavras se salvam, pelas palavras se traem. O prazer da melodia, os sotaques das diferentes línguas, o modo de ser em simultâneo tão inteligente e tão simples e voltar a acreditar na força de um argumento de cinema abençoado: “Sacanas sem Lei”, no limite, só fala disto. De uma missão linguística. Se nos seus filmes anteriores o jogo de Tarantino era a passagem do verbo à ação, “Sacanas sem Lei” rompe com este jogo dialético. Porque já não há passagem, precisamente. O verbo é a ação, tout court. E o essencial está nas diferenças entre uma língua e outra, no prazer das entoações, na proposta, neste sentido, musical que “Sacanas sem Lei” também nos oferece.

 

DONNY DONOWITZ (ELI ROTH) A personagem de Eli Roth, que Tarantino já tinha dirigido em “À Prova de Morte”, é a mais divertida do filme e um autêntico terror para as tropas nazis. A sua reputação é mundial e já chegou aos ouvidos do próprio Hitler. Donny Donowitz, sargento que Aldo trouxe consigo dos EUA para o massacre, é conhecido pela alcunha de “Urso Judeu”. A sua especialidade consiste em esmagar cabeças de nazis com um taco de basebol quando estes se recusam a colaborar e ‘insistem’ em morrer pela suástica. Para as tropas alemãs, Donny é uma espécie de Golem.

 

Pensamos na história do cinema americano, em todos os filmes de época e de guerra que foram feitos e num clichê que a América se encarregou de construir para o mundo desde que o genial Chaplin parodiou Hitler em “O Grande Ditador”: a figura do nazi. É uma figura de escárnio. Grosso modo, o nazi é um pobre-diabo que mal abre a boca, interpretado por atores de segunda mais pobres ainda. E se “Sacanas sem Lei” viesse inverter este clichê, este heroísmo made in USA, criando um coronel nazi, Hans Landa (Christoph Waltz), que, por ser poliglota, se torna o pivô de quase todas as sequências? A criação desta personagem sem igual em mais de cem anos de cinema é um gesto de invenção extraordinário.

 

SHOSANNA DREYFUS (MÉLANIE LAURENT) Atrás e realizadora francesa laureada com o César de Melhor Esperança Feminina em 2007, Mélanie Laurent tem no filme um papel decisivo. A sua personagem, Shosanna Dreyfus, de origem judia, assiste ao massacre de toda a sua família às mãos do coronel nazi Hans Landa, em 1941. Mas Shosanna, sob a mira de Landa, consegue escapar. Três anos depois, e sob o nome falso de Emmanuelle Mimieux, ela está em Paris, onde dirige uma sala de cinema. É uma mulher dura de roer, como outras heroínas de Tarantino. E a sua sala de cinema está prestes a oferecer-lhe o plano de vingança que ela há muito espera...

 

Mas há mais além do ‘tratado linguístico’ — há também o cinema. Em “Sacanas sem Lei”, ele está em todo o lado: no jogo de cartas que recorda King Kong ou Pola Negri, na personagem de Michael Fassbender, ex-crítico de cinema, na sala de cinema de Shosanna e até no filme de propaganda (“O Orgulho da Nação”) que há dentro do filme e nos revela o heroísmo hitleriano da personagem de Daniel Brühl. Estamos perante uma máquina de matar bandidos, inspirada pela musicalidade infinita do verbo e a variedade dos seus idiomas. Um grande jogo de prazer e de vingança, inflamável como o nitrato, que se arrisca a demonstrar isto — o cinema não é uma arma metafórica, é uma arma literal. E arde como um Marlboro

 


Autor: Adolfo de Castro
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