Minha vida é um cruzeiro

sexta-feira, 16 de março de 2018

Há pessoas que fazem do oceano a segunda casa, quem seja “viciado em cruzeirite” e já tenha feito mais cruzeiros do que aqueles de que se consegue lembrar.Costuma dizer que o que mais gosta quando embarca num cruzeiro é o fato de ninguém poder lhe incomodar “AL maré”. Quem o ouve fica meio desconcertado, tentando perceber se ele está brincando ou falando sério.

Minha vida é um cruzeiro





Nem uma coisa nem outra. O arquiteto João Martinez dos Santos adora embarcar e cruzar o Atlântico. Mas preza, sobretudo, a idéia de subir a bordo de algo que não pode voltar para trás nem ser interrompido.

Todos os anos faz uma média de sete cruzeiros, que já lhe permitiram conhecer os cerca de 30 países que consegue enumerar assim de repente. O seu único requisito é que o camarote tenha banheira, “para poder chapinhar à vontade, como um pato”.

João Fernando Martinez dos Santos tem ar de barão antigo, lenço de seda no colarinho, rematado por uma ametista de família e um medalhão de D. Maria I ao pescoço. Entre os dedos, um charuto arde permanentemente, entre baforadas. Fuma-os “há pouco tempo”, diz — “62 anos”...

A sua primeira experiência a bordo, decisiva, foi no longínquo ano de 1939, era ele ainda um meninote de sete anos. No primeiro cruzeiro que fez com os pais — de fim de ano, à Madeira —, João rendeu-se à vida a bordo: “Ganhei às damas a todos os passageiros, joguei pingue-pongue...” A recordação lhe ficou na memória.

Perto dos 30, depois de anos de interregno, já casado e farto de trabalhar — “tinha ateliê em Lisboa, Luanda e Rio de Janeiro, trabalhava que nem um urso, não tinha tempo nem para me lamber” —, decide voltar a trocar terra firme pelo deck de um navio. “Era um cruzeiro de vinte dias para Angola, com escala em São Tomé”, onde Martinez dos Santos era consultor dos Valle Flor. O descanso soube-lhe bem. Nenhum dos clientes o incomodou, ao invés de outras férias, interrompidas a contragosto. O fato de não poder alterar a data de partida e de não o poderem “ir buscar ao meio do mar” fizeram daquele ritual religião. “Todos os anos, em Dezembro, via os cruzeiros que havia em Agosto e marcava.”

Assim passou a ser, ano após ano, hábito que mantém até hoje, “entre os cruzeiros de poucos dias, a Tanger, à Turquia e ao Egito” (aqueles que ele chama “vou-ali-e-já-venho”), e um maior, no Verão, “de 18, 20 ou 28 dias”... Para ter uma noção do número de cruzeiros que João já fez na vida basta multiplicar os seus últimos 47 anos por sete — e chega-se a... 329. Só assim se explica que saiba de cor os números dos seus camarotes preferidos, segundo os navios e as companhias. “O 69 no ‘Funchal’, o 435 no ‘Atena’, o 415 no ‘Danae’”, diz, de cabeça. “Têm todos banheira. Isso é que tem de ser.” Pede sempre “um camarote sem vigia nem janela”, para as mudanças de luz não o incomodarem. E, se puder escolher, “a meio do barco e ao pé do elevador”.

A mulher acompanha-o sempre, “desde que não a ponham em um avião”. Assim, João foi conhecendo o mundo — da Polinésia à Austrália, do Mediterrâneo à Turquia, da costa africana às inúmeras travessias transatlânticas Portugal-Brasil. Há quatro anos, embarcou numa viagem de dois meses de volta ao mundo. Partiu de Santo Domingo, na República Dominicana, passou pela Costa Rica, pela Polinésia, pela Austrália, desiludiu-se com o interior arquitetônico da ópera de Sydney, regressou. A bordo é “uma canseira”. E o dia-a-dia a bordo de um cruzeiro, como é? “Fatigante”, diz, sem se desmanchar, como quem conta uma anedota e não quer estragar o final. “Há 1001 coisas para fazer. Jogar às setas, jogar pingue-pongue, jogar à malha, ir às festas temáticas com máscaras feitas por nós... Depois, há o ‘dia do passageiro’, mais o café da manhã, o almoço, o jantar, a ceia... Mais os espetáculos à noite. E as aulas de dança. E o bingo. Uff, uma canseira.”

Mais a sério, confessa gostar imenso da vida a bordo. “De me levantar à hora que quero, de mandar vir o meu break fast, pelas 9h30, de tomar o banhozinho, ir até ao bar beber um Pim’s. Depois almoço no primeiro turno, às 12h30. Mas o melhor disto tudo é reencontrar os amigos, que até certo ponto são sempre os mesmos. E, de vez em quando, também vou à boate.” E acrescenta: “O que mais gosto nos cruzeiros é do convívio, do ‘sempre-em-festa’. Não é por acaso que lhes chamamos os ‘barcos do amor’... O cruzeiro é a minha casa. Viveria lá o ano inteiro, se não fosse casado.”

E sempre é verdade que estas viagens são só para ricos? O arquiteto desmistifica a questão do preço: “Um cruzeiro transatlântico de 15 dias custa 125 euros por dia, o que dá 1825 euros pelas duas semanas. Se considerarmos que isso inclui viagem, estadia, alimentação e diversão, penso que não é caro, para a minha faixa etária, para quem quer ficar bem instalado e comer várias boas refeições por dia...” João diz lembrar-se de uma vez em que uma senhora de idade lhe disse que “preferia mil vezes estar num cruzeiro do que num lar — porque era mais barato, mais divertido, tinha companhia e pessoas a servi-la”.

Em tantos anos a fazer cruzeiros, o arquiteto do charuto já viveu e presenciou uma série de episódios sui generis. Destaca dois: “Certa vez, no meio de uma borrasca louca, no golfo de Leão, no Mediterrâneo, em que a oscilação do navio era tal que só estavam seis pessoas na sala de jantar, jantamos com vista para os cacos — os pratos e os copos estavam todos partidos. E não podíamos sair, porque lá fora estavam dezenas de passageiros deitados, a vomitar... Outra vez, também numa tempestade, tive de tirar o comandante do navio de baixo do sofá, onde ele tinha ido parar...” “Cruzeirite” tardia. Ao contrário de João, o empresário José Pico descobriu a paixão pelos cruzeiros há apenas cinco anos. Mas nem por isso as paixões tardias têm de ser menos intensas que as adolescentes... A prova? Desde a primeira viagem em que ele e a mulher embarcaram, para a Rússia, já fizeram 11 cruzeiros. E não dão mostras de abrandar.

Só este ano já vão a caminho do terceiro, depois de uma viagem de 16 dias ao Oriente (Singapura, Indonésia, Malásia e Tailândia) e outra de 11 dias aos Países Bálticos. A próxima, de um mês, tem partida do Canadá e passagem pela Groenlândia e ilhas Faroé, antes de aportar em Calais. “Costumo dizer que adquirimos uma doença chamada ‘cruzeirite’, que só se cura indo aos lugares por onde nunca andamos”, diz José. Antes do ano acabar, ainda farão um minicruzeiro, em Setembro, ao Nilo, e outro, de 20 dias, de Milão a Dubai. O que perfaz, ao todo, quase dois meses no mar... “É muito bom”, sorri José. Graça, a mulher, de 49 anos, que o acompanha em todas as viagens, assina embaixo. Por ela, passava os três meses de Inverno fora. Não se dá bem com o frio. No resto do ano mantém-se ocupada entre o jardim e os animais da quinta onde vivem, em Vila Franca.

É numa das salas, forrada a estantes cheias de objetos trazidos das viagens (de instrumentos musicais a quadros e estatuetas ou artefatos em vidro e cristal), que o casal explica que tudo começou após uma viagem por terra, como tantas outras, sempre com as malas para a frente e para trás. A certa altura, José disse: ”Não viajo mais!”

Como a decisão era demasiado drástica para acatar, quando Graça viu o anúncio do cruzeiro à Rússia convenceu o marido a experimentarem. Adoraram. Foi há cinco anos. Desde então, já embarcaram em cruzeiros de três meses — e equacionam a possibilidade de se aventurarem no próximo ano na Volta ao Mundo em 127 dias, embora queiram fazer apenas parte do percurso, durante dois meses e meio... O que, mesmo assim, ficará em 40 mil euros para ambos (os 127 dias custam cerca de 50 mil). Ah!, o ritual da chegada... “É um bocadinho viciante”, admitem eles. “É uma forma muito confortável de viajar, é muito mais fácil, e encurtam-se as distâncias, o que nos permite conhecer imensos países”, diz Graça. Não é pela vida a bordo que gostam dos cruzeiros, explicam. Até porque é raro irem à piscina, às massagens, ou jogar. “É pelos locais que nos permite conhecer”, confessam. Pelos “fabulosos” 45 dias que passaram no Oriente, especialmente no Japão (para ela), ou na baía de Halong, no Vietnam (para ele), onde o nevoeiro à chegada lhe fez lembrar Wagner compondo “O Navio Fantasma”; ou pela visão de Machu Picchu, no Peru; ou do sol a pôr-se no mar ao largo das ilhas suecas; ou dos glaciares do Chile; ou da vista do Pão de Açúcar sobre o Rio de Janeiro... “Estar num cruzeiro é como estar em nossa casa... À noite há espetáculos, de que gostamos muito, e de dia estamos sempre em lugares diferentes”, resume José.

A vida a bordo de um cruzeiro pode ser uma canseira. “Quando se tem de acordar às 5h da manhã para ir apanhar um ônibus para uma excursão ou um avião...”, por exemplo. Mas tudo compensa quando se cumpre a expectativa de aportar, “o ritual da chegada”. “Há povos que nos ignoram completamente, outros que nos recebem com discursos do Presidente da República...” É desta diversidade que se fazem os dias no interior destes navios. Que, como diz João Martinez, “pode ser tudo o que se quiser”. E quem disse que a vida não pode ser um cruzeiro?


Autor: K. D /Coslec.
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