Estamos a durando mais. E espera-se que o saibamos
fazer melhor. Em 2050, a expectatíva de vida para a mulher brasileira vai
rondar os 85 anos. Beleza é um conceito camaleônico e algumas marcas de
cosmética têm dado o seu empurrão.
Porém, o marketing de uma marca, a Dove, reciclou o pregão. Criou a «Campanha pela Beleza Real». Segundo a empresa, trata-se «de uma iniciativa global, ainda no início, para catalisar e
ampliar a discussão e
a definição da beleza.» Ou seja: a marca começou a soprar a idéia (música para
os ouvidos de inúmeras mulheres) de que a beleza é uma quimera forjada pela «mídia»
— e tenta aposentar o padrão, delineando modelos plurais de beleza.
Não, não se trata de realçar a formosura interior — como disse o outro, «beleza interior é lingerie». A partir de agora, somos t
odos belos. Já há meses, a marca lançara um creme com cartazes de «mulheres
autênticas» — atraentes, mas de vários tamanhos. E anunciara produtos para os cabelos,
com centenas de mulheres de perucas louras idênticas (descritas desdenhosamente
como «o gênero que aparece nas revistas»), que arrancavam as jubas artificiais
e celebravam o seu cabelo genuíno (meticulosamente penteado e tingido). A
revista «Advertising Age» (a bíblia
do setor) proclamou que a campanha minava «décadas de publicidade, explicando
às mulheres que estas são lindas como são». Mas a Dove aprofundou o safanão no
paradigma, com um vídeo «online» de 75 segundos («Evolution»), que apresenta uma
mulher aparentemente vulgar. Em 20 segundos, maquiadores e cabeleireiros fazem
por ela o que a fada madrinha fez pela Cinderela: floresce uma beldade de olhos
faiscantes, cabelos em cascata, feições esculpidas em mármore e pele de pêssego.
Depois, entram em cena o mouse do computador e o abracadabra digital. Por fim,
a Vênus nascida daquela concha postiça povoa «outdoors» com o carisma da
Gioconda. A legenda: «Não admira que a nossa noção da beleza seja distorcida.»
Até ontem, o vídeo atraíra 10 milhões de visitantes no YouTube (e no
www.campaignforrealbeauty.com). O conceito de beleza é assim tão fixo — ou, ao
contrário, tão camaleônico? Já o grego Hesíodo sentenciava: «Quem é belo é
querido, quem não é belo não é querido.» O que desencadeou a Guerra de Tróia?
Uma espécie de concurso de Miss Universo, vencido por Helena. Outro ponto
sugestivo: mesmo com os metrossexuais, a cosmética continua um santuário do
segundo sexo — e repleto de alçapões. Como lamentava Agatha Christie: «A vida é
dura. Os homens não gostarão de nós se não formos belas — e as mulheres não
gostarão se o formos.»
Ora, envelhecer não é assim tão mau, quando se pensa na
alternativa (e, quando somos muito velhos, ninguém nos vem chatear com seguros
de vida...). E estamos durando mais. Até 2050, a expectativa da vida das brasileiras
(hoje de 75 anos) saltará para 85 anos. (A dos homens, hoje nos 72 anos,
avançará para os 81.) No passado, a longevidade aumentou devido a progressos
básicos, como o acesso universal a vacinas ou à água potável. Agora, será
alargada graças à profilaxia através do DNA, ou cirurgias dantes tecnicamente
impossíveis. O «papy boom», o choque demográfico que o envelhecimento da
população provocará no futuro imediato (contraponto ao «baby boom» pós-II
Guerra Mundial), terá um impacto não equacionado na economia, afetando os
sistemas de aposentadoria. Comemorar o centésimo aniversário, atualmente
privilégio de 0,01% da população, será uma façanha bem mais comum em 2050. De
acordo com a Organização Mundial de Saúde, o número de centenários no planeta
rondará os 2,2 milhões, 15 vezes mais do que hoje. Bom, quando ouço pessoas a
discutir o controlo da natalidade, lembro-me sempre de que fui o quinto.
Contudo, convém não esquecer de que a trovejante ordem «Crescei e
Multiplicai-vos» foi dada quando a população mundial consistia em duas pessoas.
Uma jornalista, Alex Kuczynski,
publicou um livro-réplica: Beauty Junkies. Alex defende as cirurgias, o Botox,
as lipoaspirações. E afirma que as plásticas são um novo feminismo e um novo ativismo
político. A argumentista Nora Ephron (de Sintonia de Amor e Um Amor Inevitável)
contra-atacou com uma sátira: «I Feel Bad About My Neck» (top-ten do «The New
York Times»), onde, todavia, admite que as mulheres «precisam» de pintar os
cabelos.
Haja saúde? Se há
poucas gerações o flagelo mais temido era a fome, o maior fantasma dos
países ricos é agora a obesidade. As top-models, magras como hologramas, estão
a ser intimadas a se empanturrarem ao menos com uma azeitona por dia — e só se
recusam aquelas cujo cérebro é do tamanho de uma ervilha. Para a esteticista
Lurdes Jesus, as dietas da moda, que baniam classes inteiras de alimentos como
«serial-killers», perderam credibilidade. Hoje, os especialistas aconselham a
não descartar hidratos de carbono, gorduras e proteínas. Na hora H, o próprio
ovo estrelado foi salvo da cadeira elétrica.
Em «Survival of the Prettiest», Nancy Etcoff parte a
louça das ilusões: a beleza realmente existe e, pior ainda, a desnaturada Mãe
Natureza distribui-a de forma desigual. Até os bebês, quando lhes mostram fotos
de desconhecidos, fixam as caras que os adultos consideram mais belas. A beleza
não é uma mera ficção social, e nem toda jovem é bonita da maneira que é. Como
o resto da lotaria genética, a beleza é injusta. Todos ficam aquém da perfeição
— mas enquanto alguns são limítrofes, outros jazem nos antípodas. Recordando
Freud, «anatomia é destino». Os parâmetros estão desmoronando? Umberto Eco, na
História da Beleza, diz que no século XXI reinará o ecumenismo: «Trata-se de
ensinar a interpretar o mundo com olhos diferentes, a gozar o regresso a
modelos arcaicos ou exóticos — o universo do sonho ou das fantasias dos doentes
mentais.» Talvez, mas, mesmo com «as fantasias dos doentes mentais», é provável
que continuem a vingar certas regras. Como o paralelo entre o uísque e os seios
de uma mulher: um é pouco, três é de mais. Ficará mais difícil definir o bom
gosto? Depende. Como sempre, de mau gosto, é perguntar o que é chique. E chique
é não responder. Afinal, a moda é aquilo que seguimos quando não sabemos quem
somos. E, como confessou Coco Chanel,
«a moda é feita para sair da moda».
Eco tem razão quanto ao sincretismo, até ecológico. Que
o diga Elettra Rossellini, a
previsivelmente fotogênica filha de Isabella Rossellini e neta de Ingrid
Bergman. Aos 23 anos, ela convenceu a poderosa Lâncome a ungi-la como ideóloga
itinerante de um programa contra as emissões de dióxido de carbono — ao mesmo
tempo em que pavoneia produtos de uma linha «eco-chique», como o Primordiale
Cell Defense, um soro antioxidante que protege a pele contra a poluição.
Numa conferência sobre manipulações biológicas, ouvi
uma filósofa jurar de pés juntos que jamais faria uma plástica nem pintaria o
cabelo. Mas ela admitiu que pagaria qualquer preço para ter mais 15 pontos de
QI. Bem, como suponho que esteve implícito neste texto, parece que a verdadeira
confiança não depende da beleza, mas exige autoconhecimento — a mais difícil
forma de conhecimento...