Maramures, uma região agrícola escondida nas montanhas dos Cárpatos, no Noroeste da
Romênia, permaneceu uma comunidade rural ao longo de todo o século XX, como se
duas guerras mundiais, diversos conflitos nos Bálcãs e o reinado impiedoso e
louco do ditador Nicolae Ceausescu –
que eliminou as culturas locais em quase toda a Romênia – nunca tivessem
acontecido. Assim, a província vive numa cápsula do tempo e conservou vivas
muitas tradições que se extinguiram completamente noutras regiões da Romênia -
na verdade, em toda a zona dos Bálcãs, onde a tendência predominante é uma
modernização desajeitada. Em Maramures, grande parte das pessoas mais velhas
ainda usa sapatos feitos de ligaduras de feltro e couro que remontam aos tempos
em que os romanos deram o nome ao seu país. A Nike entrou em cena na moda local
há apenas alguns anos.
As janelas embaçadas do Accelerat, o vagaroso trem que une Bucareste à província de Maramures, ocultam a vista do mundo exterior. O vagão cheira a fumo, álcool barato, perfume e suor de uma centena de agricultores e outros camponeses que viajam para lugares recônditos. Eu sou um dos viajantes, e não faço idéia de onde estamos. De repente, o trem pára bruscamente, impelindo-me em direção à saída, o que é bom, mas sem a minha mala - que contém, entre outras coisas, bens tão essenciais como roupa interior quente e rolos de fotografia suficientes para fotografar uma província inteira. “A minha mala, a minha mala!”, grito depois de ter desembarcado numa pequena estação sem nome algum, numa terra de ninguém, na noite dos Cárpatos. Alguém aponta para um alto no cais. Solto um suspiro de alívio. É a minha mala. “Não se preocupe, isto aqui é Salistea de Sus”, diz uma voz através do vapor do trem que se afasta. Estou onde queria estar, em Maramures. Há aqui uma sensação de atemporalidade, de virtudes e atitudes que caíram no esquecimento no lugar onde vivo.
Pietrosul
é
o nome do pico mais alto (2.300 metros), coberto de neve, que se ergue sobre o
vale de Iza, a região mais importante da província de Maramures. A montanha
domina uma faixa de terra que foi estranhamente desprezada pelos antigos
líderes comunistas da Romênia - que literalmente destruíram muitos dos
edifícios antigos em todo o país enquanto governaram este Estado dos Bálcãs (de
1948 a 1990), especialmente sob o domínio de Nicolae Ceausescu.
O
povo de Maramures acredita que as suas aldeias medievais, em
grande parte feitas de madeira escurecida ao longo dos anos pelo frio do gelo,
granizo e neve durante o inverno e pelo sol abrasador durante o verão, foram
poupadas porque o cruel ditador romeno receava a sua resistência feroz caso se
atrevesse a tocar-lhes. “Ele achava que o melhor era deixar-nos em paz”, diz um
homem de meia idade. “As autoridades desse tempo achavam que a nossa região era
muito atrasada e estúpida demais para merecer qualquer apoio da capital”. Foi,
presumivelmente, esta obstinação e sangue frio que lhes garantiu a
sobrevivência perante uma corrente interminável de ocupações estrangeiras,
invasor após invasor: os romanos de oeste, os tártaros de leste, os osmanos do
sul, e, mais uma vez do oeste, a monarquia austro-húngara dos Habsburgos, que
dominou esta parte até 1918. Os visitantes são raros, apesar da beleza serena
da paisagem e das românticas aldeias medievais. Ninguém conhece este local, e a
infra-estrutura turística é simplesmente inexistente. Os poucos viajantes que
aqui vêm têm de ficar nas casas das pessoas - muito hospitaleiras- e o conforto
está reduzido ao mínimo. Os banheiros, por exemplo, são uns barracões no
quintal com um buraco no chão.
Reparo em duas mulheres à distância. Uma delas transporta
um embrulho. Ao aproximar-me, reconheço o que ela leva. É um bebê de pouco
dias, embrulhado num cobertor quente, a caminho do batismo de acordo com os
rituais ortodoxos romenos. Sou convidado a juntar-me ao acontecimento com
gestos largos. Não falamos a mesma língua, mas compreendemo-nos. O popa - o
sacerdote ortodoxo - espera à porta pelo grupo. A cerimônia terá lugar num
anexo e não na igreja, dado que se crê que a criança foi trazida ao mundo pelo
Diabo e tem de ser limpa do pecado por rituais purificadores antes que possa
entrar em lugares sagrados. O círio está aceso. Os dedinhos dos pés, os mamilos
e as fontes da criança são ungidos com óleo sagrado. O popa coloca uma pedra de
sal na ponta da língua do bebê e insufla um sopro de vida naquele corpinho. Vem
então o momento supremo: o sacerdote pega uma garrafa de Coca-Cola e asperge a
fronte da criança com água fria.
É uma tarde ensolarada de domingo, com jovens sentados
num banco colocado num ponto estratégico, onde os grupos de moças viram para
dar mais uma volta ao circuito. “Não há mais nada para fazer, e é uma boa
maneira de ser visto pelas meninas.” Ambos os lados, ou melhor, ambos os sexos
estão vestidos com as suas melhores roupas. É um mercado matrimonial informal,
sob a forma de simples passeio de domingo. As moças andam de braços dados aos
risinhos. Os rapazes ficam em pé aos grupos, fumando cigarros e observando.
Trocam comentários e riem alto. As garotas vestem blusas brancas e saias
floridas. Os padrões floridos indicam de que sítio ou aldeia é que vêm, dado
que cada uma tem o seu padrão próprio. E, portanto muitas das jovens se vestem quase igual. Apenas
algumas ousam quebrar a moda paroquial e preferem desfilar mais modernas: a
última moda são os sapatos altos e os vestidos compridos. As moças que têm a
audácia de usar esta indumentária parecem estar cientes do impacto das suas
roupas, tanto nos rapazes - que conseguem vislumbrar um tornozelo nu - como
também nas pessoas mais velhas, que também vêm à rua, misturando-se com jovens
ou então sentando-se em bancos em frente às suas casas.
“Todos os homens devem sair da sala”, ordena a mãe da
noiva. É hora de mais um ensaio para verificar se o vestido de casamento
assenta perfeitamente na jovem que está prestes a casar com um homem da
vizinhança, à moda da região. Os preparativos decorrem rápidos. Todos têm o seu
papel a desempenhar e ninguém assiste passivamente, em silêncio - todos têm
algo a dizer sobre o assunto. A minha câmara garante-me o privilégio de
permanecer. Retoca-se o penteado, põe-se pó-de-arroz e batom. As mulheres riem
e trabalham a sério ao mesmo tempo. Suspiram de admiração quando o vestido da
noiva é retirado de um armário com reverência. A mãe pede-me que vire a cara,
enquanto a noiva se despe e fica em roupa íntima durante um segundo ou dois -
como consigo ver pelo espelho. Então, com a ajuda de alguns alfinetes no último
momento, ela fica vestida na perfeição para o casamento. Agora, o cortejo está
pronto para ir para a igreja, o centro de toda a vida cerimonial em
Maramures.
Liderados por uma pequena banda de músicos ciganos,
saem da casa da família. Esperando do lado de fora dos portões paternais estão
os acompanhantes do noivo, que lidera a sua família com uma expressão ansiosa
no rosto. A sua futura mulher sorri placidamente. Ele devolve-lhe o sorriso, um
pouco mais descontraído. Os dois grupos reúnem-se, o casamento pode começar. Um
violino canta o amor. Prosseguimos.
A zwika é a bebida típica da região que todos os homens
bebem em praticamente qualquer ocasião, seja pela alegria, pela tristeza, para
esquecer as preocupações ou apenas para saciar a eterna sede que parece
atormentar os homens de Maramures. “À saúde”, sorri o dono de um dos muito
pequenos bares-mercearias - os chamados magasin-mixt - que proliferaram depois
da queda do regime de Ceausescu, numa onda de capitalismo em pequena escala.
Bebemos o líquido agridoce de um só gole, como dizem que se deve fazer. Estou
com um grupo de agricultores que vieram à cidade depois de um longo dia no frio
invernal dos campos, e sou o forasteiro com a câmara, que já não está - ou pelo
menos assim parece - totalmente desintegrado. Este bar pode durar como já dura
há algum tempo, mas quase todos os negócios deste gênero são efêmeros e
frequentemente dão prejuízo aos empresários que os criaram em vez de lhes
proporcionar algum dinheiro suplementar. Há simplesmente comerciantes a mais e
clientes a menos.
O luto é uma experiência extraordinária em Maramures.
Quando alguém morre, a família trabalha para tornar o funeral um grande
espetáculo que será o tema de conversa da povoação por muitos meses. Quando
chegam, os visitantes encontram o cadáver numa urna aberta, colocada em cima de
grades de cerveja, no quintal da casa da família. Toda aldeia está lá para
dizer adeus ao falecido. Quanto mais convidados, melhor. As famílias ricas
empregam alguns popas para dar à cerimônia ainda mais credibilidade e
dignidade. Nenhum funeral que se preze pode dispensar uma fila de carpideiras
vestidas de preto, que soltam lamúrias, gritos e choros até o corpo ser
enterrado. “É preciso assegurar que todo mundo se lembre do acontecimento”, diz
um dos filhos do morto. “Não descansamos enquanto as pessoas não vão para casa
de olhos vermelhos e barriga cheia”. Depois do rito fúnebre, que dura algumas
horas, o funeral sai da casa e todos seguem atrás de uma carroça puxada por
bois e liderada pelos homens da família que acompanham o ente querido à sua última morada, ao lado da igreja. As carpideiras choram e gritam de novo, puxando
os cabelos e clamando aos céus. Quando voltam do enterro, abandonam a sessão de
lamúria e comem desalmadamente. O suntuoso banquete é servido em cima de mesas
de madeira postas no jardim. É inverno.
Na manhã de Natal, todos os jovens habitantes da aldeia
de Maramures invadem as ruas para um ritual
que remonta às crenças animistas dos seus antepassados, do tempo em que os
romanos ocuparam a região a que chamaram Dácia (desde cerca de 200 d.C. até
aproximadamente 450 d.C.). A cadeia montanhosa do norte dos Cárpatos
representava a fronteira norte da província romana da Dácia. Antes da chegada
do cristianismo a esta região, uma das figuras religiosas mais importantes era
Zamolxe, um herói local que foi venerado como santo após a sua morte. Crê-se
que Zamolxe pode ajudar a alma errante de um morto a encontrar o caminho para o
céu. Uma parte dos grupos que andam nas ruas no Natal de Maramures representa
os espíritos malignos, as almas penadas, os auxiliares do Diabo. São os
representantes do mal neste jogo cerimonial que transporta memórias de ritos
pagãos assimilados pelo simbolismo cristão ortodoxo medieval. Envergam peles de
ovelha, cornos de cabra na cabeça e badalos de vaca pregados nas vestes
atemorizantes. Alguns usam capuzes pontiagudos, feitos de pele ou outros
materiais, frequentemente pintados de cores berrantes - principalmente pontos
vermelhos - que simbolizam a morte. Muitos participantes exibem grandes narizes
vermelhos, cujo significado ninguém parece recordar. Alguns personificam
figuras bíblicas, como o rei Herodes, São Nicolau ou os três reis magos. O lado
maligno defronta os bons, os soldados do “exército de Deus”, como lhes chamam.
Estes são jovens vestidos com pretensos uniformes com toda a parafernália
militar imaginável, como medalhas, condecorações, punhais e cordões. Outros
vestem-se de São José e Virgem Maria - tudo com roupa de fabricação caseira.
Entre os dois lados pontifica um “Velho” de grandes barbas e uma marreca - é o
símbolo dos antepassados, o guardião dos costumes tradicionais, aquele que tem
por missão assegurar que Maramures permanece igual a si própria. Carrega um
grande bastão de madeira, que pode utilizar para separar os dois lados quando
os ânimos por vezes se aquecem demais. As duas partes encenam batalhas,
correndo e perseguindo-se uns aos outros, gritando e insultando-se - mas é só
de brincadeira. Tudo continua até a noite de 31 de dezembro, quando os
espíritos malignos abandonam a aldeia de vez. Os soldados vitoriosos do
exército de Deus já podem ir para a igreja dar as boas- vindas ao Ano Novo,
juntamente com o resto dos aldeões, incluindo os antigos “espíritos malignos”,
vestidos agora de humanos normais, sem receio