O país aos olhos de chico

sábado, 20 de junho de 2009

No seu belíssimo quarto romance, Chico Buarque funde a memória de um velho com a memória do país e produz uma narrativa poética e arrebatadora tal qual sua música

O país aos olhos de chico



Eulálio Montenegro d’Assumpção está deitado na enfermaria de um “hospital infecto”. O seu corpo frágil testemunha uma existência centenária que “se alongou além do suportável, como linha que se esgarça”. Pobre e solitário, a única coisa que lhe sobra é a memória, mas esta se tornou uma “vasta ferida”, um “pandemônio”, uma porta aberta por onde entra o passado, sem qualquer ordem cronológica, multiplicando-se em ínfimos detalhes (“recordo cada fio de barba do meu avô, que só conheci de um retrato a óleo”), enquanto o presente se estreita, baralha e desfaz. Mesmo na miséria, Eulálio mantém o aprumo e os tiques de superioridade social, aprendidos numa família em que se falava francês até para pedir o saleiro. À sua volta, só vê “gente desqualificada”. O som do televisor está sempre alto demais e as baratas trepam pela parede. Entre a dor e a morfina, entre a vigília e os sonhos a preto-e-branco, ele tenta narrar a sua vida, fixá-la, transmiti-la nunca se sabe bem a quem (porque tanto se dirige às enfermeiras como à filha, tanto barafusta com os médicos como interpela a mãe morta há muitas décadas).

O romance é uma sucessão de monólogos fragmentários e contraditórios, nos quais certas histórias reaparecem várias vezes, mas sempre contadas de outra maneira, a partir de outro ângulo, com outra vibração. A verdade, se existe, é instável. Tudo pode ter sido assim — ou ao contrário. Na cabeça “meio embolada” de Eulálio, os tempos misturam-se, cruzam-se, coalescem. E os espaços também. Já não há palacete em Botafogo, chalé em Copacabana, apartamento na Tijuca nem fazenda na “raiz da serra” (invadida pela favela), mas no “palavrório” do moribundo eles recuperam o antigo esplendor.

O protagonista de “Leite Derramado” é a charneira de uma longa linhagem de Eulálios, tradicionalmente próximos das elites e do poder. O tetravô português lutou contra as tropas de Napoleão; o trisavô desembarcou no Rio com a corte de D. João VI; o bisavô foi um barão negreiro; o avô um abolicionista que queria lucrar com o regresso dos escravos a África; e o pai um senador da Primeira República, pródigo nos negócios e nos vícios. A tibieza do narrador marca de certa forma o começo do declínio: depois dele, a filha casa-se com um imigrante italiano de segunda geração; o neto torna-se maoísta (morrendo nas prisões da Ditadura); e o tetraneto trafica drogas, fechando o ciclo da decadência dos Assumpção.

Quer pelo arco temporal abrangido, quer pelo imenso leque de personagens, pode se dizer que Chico Buarque escreveu uma saga familiar — só que uma saga familiar de câmara: breve, compacta, reduzida ao essencial. Uma das principais virtudes deste romance é precisamente esse milagre de condensação e leveza, para o qual contribui uma escrita depuradíssima. Outro ponto forte é a articulação feliz entre as experiências individuais e as coletivas. Na história dos Eulálios são sempre legíveis — à transparência — alguns dos momentos capitais dos últimos 200 anos de História do Brasil.

O fulcro do livro, porém, está em Matilde, primeira mulher e único verdadeiro amor do protagonista. É essa figura feminina intangível (capaz de entrar no oceano “como se pulasse corda”) que ilumina a solidão de Eulálio. Um dia, desaparece de casa, deixando para trás marido, filha bebê e um mistério (a razão da sua fuga) que reverbera em todas as páginas, como premonitório sinal do caos futuro.

No exercício narrativo quase perfeito que é “Budapeste”, de 2003, Chico Buarque parecia ter atingido o cume das suas capacidades literárias, mas neste “Leite Derramado” sobe ainda mais alto e assina um dos melhores romances em língua portuguesa da primeira década do século XXI.


Autor: Adolfo de Castro
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