Vidabrasil circula em Salvador, Espírito Santo, Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo Edição Nº: 303
Data:
30/3/2002
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TAP Air Portugal aumenta o número de vôos ligando o Nordeste brasileiro a Portugal
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Pinifarina cria um novo Ferrari, o Rossa, com 485 CV do motor V-12 550 Maranello
Turismo

Qualquer cabotino resumiria Barcelona em três efêmeras palavras: design, Mediterrâneo, futuro. Acrescentar-lhe-ia o urbanismo. Tudo bem, Gaudí, e o texto ficaria por ali. Sim, concordo, 23 palavras e cinco definições são desonestas e não chegariam sequer para justificar o dinheiro investido numa reportagem nos antípodas ibéricos de Lisboa – Barcelona, capital da Catalunha, é bem mais do que isso.  
A tradicional confeitaria Escribã, no coração das Ramblas, fronteira ao Museu de l’Eròtica, três minutos a pé do fabuloso Palau Güell, obra genial do quase-santo Antoni Gaudí i Cornet, é uma excelente, magnífica, síntese deste frenético mas sereno pulsar: o empregado mestiço serve-nos com um refinado cuidado cosmopolita; a traça modernista cria uma ilusão e agiganta o pequeno salão do início do século; dependurado nas paredes da cafeteria, Pedro Almodóvar agradece com vênias a cremosa tarte ali confeccionada; enfim, os turistas deliciam-se com a saborosa especialidade de chocolate preto salpicada com confetes.  
É redundante – Mas no meio de tanta tarte com cobertura de açúcar sobressai o manchego Almodóvar. É, não deixa de ser paradoxal que “Tudo sobre minha mãe” tenha oferecido a Barcelona um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro precisamente pelos seus guetos, prostituição e travestismo. Manuel Vásquez Montalbán, escritor, “Pepe Carvalho” por adoção, catalão inveterado, apelida-a de “Rio de Janeiro social”. Numa cidade de três milhões de habitantes, seria mais um ângulo para explorar, mais um. Contudo, e felizmente, a utopia está para Barcelona como o whisky para um alcoólatra - confundem-se.  
Primeiro mergulho (Mediterrâneo). “Barcelona Oberta al Mar” – Promovido pela Generalitat (governo autônomo da Catalunha), o mote inrrompe na época dos Jogos Olímpicos de 1992. É o ponto de inflexão: a cidade e o Mediterrâneo fundem-se numa entidade ainda por catalogar. De resto, Cristóvão Colombo, herói da Pantalha, genovês de nascimento, ícone do descobrimento ibérico, há muito que apontava com o indicador para o tal destino manifesto - mesmo ali, hirto no seu imaculado pedestal na desembocadura das Ramblas. O indicador é inequívoco: água, aqua, Water, eau, Wasser.  
Lá está, para Barcelona, mergulhar no futuro é um vício como qualquer outro; há cidades que têm o construtivo e psicanalítico sado-masoquismo das obras. Esta ejacula projetos: primeiro as quadrículas do plano Cerdà. A Exposição Universal de 1888. A onda modernista e a Renaixença catalã. Segue-se a exposição de 1929. Cai Franco e vem a autonomia de Madri e furor correspondente. Não pára – seis, sete anos para preparar os Jogos Olímpicos. Em 2002, o Ano Internacional de Gaudí. Não bastasse, o fórum das culturas, entre 23 de abril e 24 de setembro de 2004: não lhe deram uma Expo e Jordi Pujol, presidente da Generalitat, vingou-se – arranjou o alto patrocínio da Unesco e está montando uma mega-feira devotada à “cidade sustentável”, “diversidade cultural” e “condições para a paz”. Caso vingue o ecumênico conceito, o Porto poderá ser o cenário para o arraial de 2008.  
Um pretexto – Sempre que é necessário expandir a cidade, inventa-se um pretexto. Será exagero afirmar que os arquitetos estão para Barcelona como os astrofísicos para a Nasa? 1992 é o ano da levitação transcendental: o polêmico Mariscal inventa o Cobi, mascote olímpica; a montanha de Montjuic infraestrutura-se com o Palau de Sant Jordi, a piscina e o Estádio Olímpico ou os magníficos teleféricos; o luxuoso Hotel Arts e o edifício Mapfre, os mais altos da cidade, crescem até se tornarem ícones urbanos; as palmeiras colonizam as avenidas; Barceloneta e Sant Sebastià tornam-se praias da moda; a classe média alta muda-se para a Vila Olímpica, Parque das Nações “avant la lettre”, os arquitetos Ricardo Bofill (no confundir con su hijito, exnovio de Chabeli, hija de Júlio y Heramnita más jóven de Enrique Iglésias) e Santiago Calatrava entram no “star system” da hispanidade; o Teatro do Liceu renova-se; o Port Well prolonga as Ramblas mar adentro. Já com alguma pátine, os espaços criados na última década estão agora maduros para a fruição.  
Exibicionismo burguês – tolerável – é o que não falta. Um estranho misto de Jordi Pujol, Josep Lluís Núñez (presidente do FC Bracelona durante duas décadas) e Pasqual Maragall (alcaide responsável pelo êxito olímpico), eis o admirável resquício da rabia nacionalista de segunda cidade. No limite, convenhamos, este coquetismo conduz-nos a uma espécie rara de stress do design. Ostensivo ou não, tudo tem uma idéia, um conceito por trás. Uma caixa de fósforo, a Sagrada Família ou uma parada de ônibus. Irritante? Enervante? Acreditem que sabe bem e tem a vantagem de ficar a pelo menos 1.200 quilômetros do improviso de Lisboa. Até as praças de touros se metamorfoseiam em mesquitas.  
Segundo mergulho (agosto) - Como qualquer cidade ricaça, endinheirada, além de vários El Corte Inglês e um número crescente de marroquinos, Barcelona tem uma enorme vantagem para o visitante. Está vazia em agosto. A sua peculiar e exótica fauna marcha, prefere latitudes mais baixas. Nem de propósito: Barcelona é a cidade espanhola com maior concentração de agências de viagens de longo curso por metro quadrado – ninguém duvida que Vietname, Equador, Tailândia ou Tanzânia são destinos sonantes para repousar.  
Uma visita no Camp Nou, se não obrigatória, é no mínimo pedagógica. O museu do FC Barcelona – festejando este ano o seu centenário – é um dos mais visitados de toda a Espanha, logo a seguir ao Museu do Prado, em Madri. Pronto, é de gosto duvidoso sugerir uma camisola de Johan Cruijff ou umas chuteiras de Kubala a concorrer mano a mano com um quadro de Diego Velásquez, mas, lá está, as coisas são o que são: autopulmans com as mais variadas matrículas não dão tréguas ao calvo arrumador oficial do Barça. O povo adora bola e as respeitáveis autoridades de Barcelona, com uma mãozinha de Luís Figo e do símbolo étnico que é Josep Guardiola, acarinham a arte de entreter as massas cultivadas.  
Concurso de decoração - Aliás, Barcelona sabe caprichar e aprendeu a combater a pobreza antropológica de agosto. A festa Major de Gràcia, organizada nos últimos dias do mês desde os anos 20 do século passado, envolve todos os bairros da capital num concurso de decoração que lembra os nossos santos populares. Cada rua tem o seu próprio programa, encerrado com um repasto local para os nativos e respectiva orgia pirotécnica. Barcelona gosta do fogo – basta assistir a um espetáculo de La Fura dels Baus ou de Els Comediants para percebê-lo. A festa Major de Sants é, digamos, a penúltima etapa deste crescente festival, que começa em São João (24 de junho) se prolonga até 11 de setembro, dia da independência da Catalunha (Dia da Nacional de Catalunya).  
O verão catalão não é linear. A costa brava oferece várias possibilidades de praia, de Tarragona a Gerona. Contudo, se é dos que acredita que a melhor forma de conhecer uma cidade é perder-se nela, finja que tropeçou em La Predera (próximo das Ramblas, com noites de música ao ar livre ) ou no Museu Picasso (detentor de uma das maiores coleções monográficas do mundo). Tem ainda a XX Edição do Festival Internacional de Música Pau Casals de Vendrell, entre 15 de Julho e 28 de agosto, ou o eclético Festival de Verão de Reus, a poucos quilômetros, até 12 de agosto. Se prefere o método de observação participante, ensaie uma sardana (dança típica catalã, com origens na Sardenha, ex-colônia de Aragão, e na Grécia) ou alugue uma bicicleta e suba Montjuïc – o Estádio Olímpico vale uma visita (Ok, prepare-se para cruzar com 347 japoneses e respectivos ônibus). Na verdade, “Montanha Mágica” não é só o nome do romance de Thomas Mann – há muito que os barceloneses tratam por Tu Montjuïc. O seu castelo, construído no século XVII, é o símbolo da supressão da autonomia catalã, em 1714. Não longe, perdida na frondosa vegetação mediterrânica, está a Fundação Miró, na Plaça Neptú. Em frente, a Serra de Colcherolla e a montanha do Carmel, onde viveu o grande gênio modernista Gaudí. A vista sobre o porto, essa é desonesta – aí verá também os navios rumarem a Gênova ou às Baleares. É impossível travar, o Mediterrâneo exerce uma fascinante força centrípeta sobre Barcelona. Positivamente engolida pelo Mare Nostrum; é quase tão rápido chegar a Marselha como a Madri.  
Último mergulho (estômago). Está cansado? Nasceu cansado? Estas e outras idiossincrasias são totalmente respeitáveis e Barcelona cultiva essa cumplicidade. O entardecer na relva de Port Vell, nas escadarias do parque Güell ou numa esplanada do Porto Olímpico dão-nos força e energia para viver. É aqui, de resto, junto à praia e bem em frente ao vistoso Hotel Arts, que está uma das mais famosas danceterias da cidade, a Luna Mora, que já teve a sua sucursal alfacinha, nos idos tempos da Exp’98. A rumba, com uma derivação catalã, e a salsa, também ao molho em castelhano, estão onipresentes ao longo do verão.  
Parelladas e catalana - Se continua exausto, muito bem, está no seu direito. Perto de Barceloneta, as Parelladas (paela) e a crema Catalana (leite-creme) do 7 Portês têm propriedades, digamos, medicinais. Fundado em 1836, é o mais antigo restaurante da cidade condal com direito a site na Internet e tudo. Tem uma aura de magia. A carta de vinhos não desilude e é diretamente proporcional à excelente qualidade do serviço. O preço não ultrapassa as 4 mil pesetas e, além da vantagem de comer num santuário gastronômico, pode jantar até à 1h00, o que é sempre um raro privilégio nos dias que correm.  
É tão injusto descrever Barcelona em dez mil caracteres como não ir a outro território sagrado dos comensais – apesar da praga turística (e você é mais um, nunca se esqueça!), o restaurante Los Caracoles não é exageradamente caro e é uma âncora incontornável no coração do Bairro Gótico. Surpreendentemente, as salas vão se desmultiplicando em harmonia. Aqui pode digerir uma ração de setas (cogumelos), a segunda paixão catalã... depois do FC Barcelona. Por via das dúvidas, e nunca se sabe o dia de amanhã, tente umas navajas a la plancha (será preciso traduzir?).  
Territórios recém-conquistados por Almodóvar, o Bairro Gótico e o Bairro Chino são o campo predileto de toxicodependentes, notívagos, travestis, freaks, ladrões, visionários e prostitutas. Aqui tudo é normal. É o paraíso da vanguarda, que na Catalunha também é nome de jornal. Mas, paadoxalmente, até na satírica tragicomédia almodovariana Barcelona se sai bem – não será por acaso que, após perder o filho, Manuela (Cecilia Roth) regressa a Barcelona à procura do progenitor. Talvez sem se aperceber, o realizador eleva a cidade a capital da esperança e da liberdade – por contraposição a Madri. É. Estar submersa no futuro tem múltiplas vantagens: na “Babel semiótica” de Montalbán, o mau até parece bom  
 

  
A estética vanguardista da Gaudí fez escola. Só o Mediterrâneo concorre com a mesma intensidade



Camp Nou, Hotel Altis, Los Caracoles e Teatro do









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Catalunha homenageia o gênio modernista em 2002

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