Um mundo de anéis nos envolve. Entre eles, um merece ser qualificado como o primeiro: chama-se benzeno e é uma molécula
Tudo começou com um enigma químico encontrado no ventre de uma baleia. Em 1825, Michael Faraday decompôs óleo de baleia com calor (pirólise) e obteve um líquido incolor de grande estabilidade e inércia química que possuía uma misteriosa fórmula, CH. A molécula foi denominada de benzeno, e posteriormente estabeleceu-se que a sua fórmula química C6H6. O enigma estava lançado: se cada átomo de carbono deve estar unido a quatro átomos vizinhos, e cada átomo de hidrogênio a outro átomo, como podia existir um composto com fórmula química C6H6? Como poderiam estar ordenadas as suas peças?
E assim foi, a sombra da irresolução estendeu-se pelo reino da química orgânica até que, anos depois, o rumor de que alguém havia encontrado a solução para o enigma se propagou por todo o mundo.
Com efeito, o químico August Friedrich Kekulé seria capaz de deduzir a estrutura do benzeno, pelo menos em seu aspecto. Como outros antes dele, havia chegado até à estrutura linear: –CH=CH–CH=CH–CH=CH– que quase verificava todas as condições. Quase, porque os dois carbonos dos extremos só estavam unidos a três vizinhos. Sobrava-lhes uma união livre. Para solucionar o dilema, Kekulé decidiu transformar o benzeno numa molécula cíclica: num anel. Algo que, como disse depois, era inevitável: “Que outra coisa poderia fazer um químico com as duas valências que sobravam no benzeno, senão formar um anel com elas?”. Talvez fosse inevitável, mas o certo é que aquele foi o primeiro anel, ou estrutura cíclica, que se postulou na química orgânica para justificar a estrutura de um composto.
Kekulé acabava de descobrir não um anel qualquer, mas sim o Anel. Único por ser o primeiro, porque supunha uma porta aberta para uma nova dimensão e porque a sua descoberta marcou a confirmação definitiva da importância das estruturas, que até esse momento era motivo de polêmica e discussão entre os químicos. A resolução do enigma do benzeno supunha o elo definitivo para que os compostos orgânicos deixassem de ser fórmulas (C6H6) e se convertessem em estruturas (um hexágono). Uma mudança fundamental que converte a química orgânica numa disciplina mais exeqüível, previsível, sistematizada... e, consequentemente, mais atrativa.
Por fim, era o anel número um, pela profecia que levava inscrita: “Um anel para todos dominar. Um anel para os encontrar. Um anel para todos prender e nas trevas os reter”, segundo o relato de J.R.R. Tolkien.
“Dominar” (os cientistas) foi fácil, inevitável. Apesar dos riscos que escondia – o benzeno é tóxico, inflamável e cancerígeno, ainda que esta última característica fosse desconhecida na época –, a combinação daquela estrutura única e dos seus “poderes” era muito tentadora.
O cumprimento da profecia – O que primeiro seduziu os químicos foi a sua singular estrutura. Além de ser um hexágono completamente simétrico e plano, o que verdadeiramente suscitou a sua atenção foi o fato de introduzir a idéia de um ciclo. Ao atravessar esta porta, os resultados apareceram de imediato: por todas as partes começaram a encontrar-se – ou redescobrir-se, já que a estrutura cíclica era a peça mestra que permitia completar muitos puzzles abandonados – compostos que incluíam benzenos, derivados do benzeno ou que apresentavam uma estrutura similar à desta molécula. “Com o conceito de anel de benzeno quase se poderia dizer que o número de compostos orgânicos se multiplicou infinitamente”, afirmou o químico August Wilhelm von Hofmann, em 1890. E só tinham passado 25 anos desde a descoberta.
No entanto, a atração que exerciam os poderes do benzeno crescia dia após dia. Sobretudo, quando à sua estabilidade se somaram uma série de reações químicas recém-descobertas – as mais importantes, as de Friede e Crafts – que abriam uma nova porta: a da síntese de derivados do benzeno.
Mas detenhamo-nos um pouco mais na grande estabilidade do benzeno, que provém da presença de seis elétrons deslocados ao longo de todo o anel, e que o mantém coeso. Cada um dos átomos de carbono do anel de benzeno cede um dos seus quatro elétrons um fundo comum que confere simultaneamente reatividade química e estabilidade estrutural. É a partilha de seis elétrons que torna os átomos de carbono indistintos entre si, formando uma unidade única comum. Também eles poderiam ser chamados em conjunto com os hidrogênios “A Irmandade Atômica” deste anel.
Tudo isto foi descoberto na etapa posterior a Kekulé, uma vez que este acabaria por abrir caminho para o estudo dos compostos químicos através da sua estrutura. O principal responsável pela explicação foi Erich Hückel, que, em 1931, e graças à regra que teria o seu nome, ampliou a idéia desta estabilidade extra para além do benzeno, expandindo-a a todos os compostos que apresentavam um fundo comum de elétrons os chamados compostos aromáticos. Não, este termo químico não tem atualmente a ver com o odor, mas as suas origens sim. O termo “aromático” surgiu, no princípio, como conseqüência do agradável aroma que emanavam certos compostos, entre os quais se encontravam vários óleos essenciais. Posteriormente, comprovou-se que todos eles partilhavam com o benzeno a estabilidade extra graças ao fundo comum de elétrons, característica que passou a ser conhecida como aromaticidade. A diferença é que nesse momento não era alusiva a uma propriedade olfativa e sim de organização molecular.
Mas, por que é tão importante a aromaticidade? Para entendê-lo, apresentamos dois casos. Caso A: você é uma biomolécula a quem foi dada a missão de transmitir uma mensagem vital. Mas, para entregá-la, tem de atravessar um território perigoso: o interior de um organismo vivo cheio de inimigos – agentes químicos, enzimas etc. Uma estrutura aromática dava jeito. Caso B: agora, imagine que era encarregado de decidir a estrutura necessária para dotar um remédio que deve atuar no interior do corpo humano e, além disso, que possa oferecer uma ação prolongada. Qual a estrutura que escolheria? Graças à formulação teórica de Hückel, às conseqüências que implicava e às descobertas já realizadas até esse momento – quando já tinham sido compreendidas as estruturas aromáticas de um amplo número de produtos de origem natural –, tanto a busca de novos compostos naturais como, sobretudo, a sua síntese e a de derivados que pudessem atuar como remédios, recebeu um novo e considerável impulso; uma das conseqüências é que, na atualidade, se sabe que muitos dos compostos naturais se baseiam numa estrutura aromática (são cíclicos, planos e devem possuir uma nuvem contínua de elétrons deslocados).
O anel nos controla – À medida que se investigava, constatava-se também a terceira parte da profecia; que o anel – agora já não entendido somente como o benzeno, mas também como os seus derivados – nos controla: hormônios, vitaminas, neurotransmissores, aminoácidos e inclusive ácidos nucleicos, os portadores do material genético, possuem anéis na suas estruturas.
Mas existe outra forma de controle mais sombrio, e que nos aproxima de novo da epopéia imaginada por Tolkien e dos poderes do anel original, capaz de anular a personalidade, de criar uma necessidade, uma dependência e de transportar o portador para além da realidade, a um mundo mágico de alucinações e visões (como Frodo quando colocava o anel no dedo). Poderes similares aos de outros compostos com estruturas cíclicas: as drogas naturais e os seus derivados sintéticos.
Atualmente, e tendo em conta os efeitos nocivos do benzeno no ambiente e no homem, o projeto europeu PEOPLE (Population Exposure to Air Pollutans in Europe) – cujo objetivo é avaliar os níveis poluentes atmosféricos no meio ambiente, no interior dos edifícios e o grau de exposição a que estão sujeitas as pessoas que habitam e/ou trabalham em algumas cidades européias – lançou uma iniciativa inovadora em 22 de outubro de 2002, onde 115 voluntários durante mais de 12 horas usaram um tubo de difusão que recolheu uma amostra do ar a que estiveram expostos, registrando assim, a concentração de benzeno. Quanto aos resultados, já serão conhecidos nos próximos dias
Os poderes do benzeno
O mal habita o anel e corrompe quem o possui,
advertia Gandalf. Um aviso bem real
A inalação de vapores do benzeno (comercialmente conhecido como benzina) pode provocar transtornos no sistema nervoso central, que se manifestam em enjôos, dores de cabeça, náuseas, sonolência, perturbações psíquicas, perda de consciência e paralisia do sistema respiratório, convulsões, coma e morte. Localmente, pode irritar os olhos, a pele e as vias respiratórias superiores. Se atingir os pulmões sob a forma líquida, pode provocar um edema pulmonar e hemorragia. A exposição crônica pode resultar na depressão da medula óssea. O benzeno é um agente mielotóxico, estando também provado que é cancerígeno. Agora que foi você avisado, evite a todo custo o anel, sob pena de se transformar num Gollum.
O segredo dos heróis e dos deuses
Os incas não se separaram do seu “tesouro”
por nada deste mundo
Em 1874, Alder Wright preparou um derivado da morfina (esta, por sua vez, é um derivado do ópio), a diacetilmorfina, que em 1898 foi comercializada pela empresa alemã Bayer. Apresentaram-na como um remédio heróico, devido à sua capacidade para aliviar a dor, pelo que foi batizada como heroína. A sua natureza viciante demorou algum tempo a ser conhecida. Contudo, a cocaína – “oculta” nas folhas de coca – há alguns séculos já dominava as mentes dos homens. Conhecida como “A Planta Sagrada dos Incas”, era o seu “tesouro”, do qual não se separavam por nada deste mundo.
Um universo de anéis
As estruturas cíclicas definem muitas das biomoléculas
A importância dos anéis – entendidos como compostos com um esqueleto cíclico que, em certas ocasiões, são além disso aromáticos – é todavia mais evidente quando observamos as biomoléculas: as estruturas dos aminoácidos, como o triptófano, a tirosina e a fenilalanina incluem ciclos, vitaminas como a A e a B; hormônios como a progesterona e a testosterona; o grupo hemo, que é responsável pelo transporte de oxigênio no sangue; neurotransmissores como a dopamina, e inclusive o colesterol. Não obstante, o melhor exemplo é o dos ácidos nucleicos (DNA e RNA): as bases nitrogenadas que os compõem (timina, guanina, citosina, adenina e uracilo) apresentam uma estrutura cíclica.
Os anéis da guerra
Os homens lutaram entre si para controlá-los
Tal como as criaturas imaginadas por Tolkien, como é o caso dos elfos e dos anões, os homens também guerrearam entre si para obter o anel e com ele controlarem os outros anéis; não os criados por Sauron, mas sim alguns muito “tentadores” que existem na natureza. Como a morfina – responsável pelos efeitos do ópio, que provocou a guerra do mesmo – e o chá – com a teína, um acalóide cíclico que estimula o sistema nervoso central –, do qual os ingleses detinham o monopólio, praticando preços elevados pelo seu fornecimento, o que contribuiu para o início da Guerra da Independência dos EUA.
>Bilbo Baggis
Encontrou o Anel num local sinistro, o refúgio de Gollum, e levou-o para o Shire, fazendo com que os hobbits fizessem parte de uma missão com a qual não contavam.
>Michael Faraday
Foi o responsável por isolar o benzeno a partir do óleo de uma baleia e levá-lo até ao território da química orgânica, dando início a toda essa aventura.
>Gollum
Antes de se tornar uma criatura, era um hobbit. A sua transformação deveu-se ao uso do Anel, a que chamava de “o meu tesouro” e que foi a sua condenação.
>William Henry Perkin
Também perdeu “o seu tesouro”. Abandonou a pesquisa depois de descobrir de forma casual o primeiro corante artificial (a púrpura da anilina, dotada de um anel).
>Boromir
Membro da Irmandade do Anel. Defendeu a idéia de que se devia usar o poder que encerrava o Anel, sem ter em conta a sua natureza maléfica. Morreu pelo Anel.
>Charles Mansfield
Desenvolveu sistemas de destilação para separar do carvão de hulha muitos anéis, incluindo o benzeno. Morreu num incêndio causado exatamente pelo benzeno.
>Gandalf, o mago
O mais sábio dos magos enviados à Terra Média foi quem melhor compreendeu a importância do Anel. Por isso converteu-se no líder espiritual da Irmandade.
>August Wilhelm Von Hofmann
Teve consciência do que representava a descoberta da estrutura do benzeno e generalizou o uso do hexágono para representá-lo.
>Frodo Baggins
O portador do Anel. É encarregado de transportá-lo até Mordor, para destruí-lo. Para acompanhá-lo, e para ajudá-lo na sua difícil missão, foi formada a Irmandade do Anel
>August Friedrich Kekulé
Quem descobriu a estrutura do anel, o que originou a outra “irmandade do anel”, que aqui se encontra. A estrutura chegou até Kekulé de forma surpreendente: num sonho.
>Legolas e Gimli
Representantes, dentro da Irmandade do Anel, de duas raças tão díspares como os elfos, genuínos representantes da pureza da Terra Média, e os anões, que reinam por baixo da terra nas suas minas e túneis. Apesar destas raças nunca terem tido boas relações, ambos acabaram se tornando grandes amigos. Uma peculiar aliança que trouxe grandes benefícios durante a missão do Anel.
>Charles Friedel e James Mason Crafts
Crafts era engenheiro de minas, e estabeleceu uma estranha e muito frutífera aliança com Friedel, legítimo representante da pureza da química orgânica. Desta aliança surgiram as reações de Friedel e Crafts, que permitiram introduzir grupos no anel. Uma reação crucial para a obtenção de derivados do benzeno e que viria a contribuir para o surgimento da indústria petroquímica.
>Sauron
Senhor Negro de Mordor, tenta por todos os meios acabar com Frodo Baggins, para recuperar o que uma vez foi seu: O Anel do Poder, que lhe permitirá cobrir toda a Terra Média nas Trevas.
>Hermann Kolbe
Nutria um ódio ilimitado por Kekulé. Desprezava-o e acusava-o sempre que podia. Um ódio que começou
por uma disputa científica. Fez importantes contribuições teóricas para a química.
>Aragorn
Herdeiro de Isidur, rei dos homens e, como tal, herdeiro legítimo ao trono do reino de Gondor e Arnor, algo que lhe é reconhecido durante a aventura.
>Erich Hückel
Como Aragorn, coroou-se graças ao Anel. Demonstrou que a sua estabilidade surgia com a presença dos seis elétrons deslocados ao longo da molécula.
>Sam, Merry e Pippim
Os três hobbits, amigos de infância de Frodo, acompanharam-no desde o momento em que iniciou a sua perigosa viagem, e sempre se mostraram dispostos a dar tudo por ele. Uma lealdade à prova dos anéis. Nem os orcs, nem os enviados de Sauron, os Cavaleiros Negros, nem mesmo o olho-de-fogo (Sauron), que está constantemente a observar, poderá quebrar a vontade destes pequenos seres em ajudar, na medida do possível, o seu amigo.
>Alexandre William Williamson, William Oding e Charles Frederic Gerhardt
Os mais fiéis companheiros de August Friedrich Kekulé desde o início da sua aventura. Pelo menos, assim os considerou Kekulé, quando em 1858 admitiu a sua dívida para com eles. Aconselharam-no em muitas ocasiões, e inclusive “cederam-lhe” algumas idéias. Não é de estranhar, pelo menos no caso de Williamson: Kekulé intercedeu a seu favor na disputa científica que mantinha com Kolbe. Este nunca o perdoou.
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Uma cena de ‘O senhor dos anéis’. O anel que aprisionava Gollum é aqui substituído pelo benzeno
O mal habita o anel e corrompe quem o possui, advertia Gandalf. Um aviso bem real
A heroína nasceu como um remédio
A cocaína também é formada por anéis
Bilbo Baggis
Michael Faraday
Gollum
William Henry Perkin
Boromir
Charles Mansfield
>Gandalf, o mago
August Wilhelm Von Hofmann
A adenina, uma das bases nitrogenadas do DNA, é um “duplo anel”
A porina possui aminoácidos com anéis na sua estrutura e forma, quando vista de cima, anéis que se associam entre si
Frodo Baggins
August Friedrich Kekulé
Legolas
Gimli
Charles Friedel
James Mason Crafts
Sauron
Hermann Kolbe
Os homens lutaram entre si para controlá-los
Em 1773, os colonos lançam ao mar um carregamento de chá
a molécula da morfina
a molécula de teína
Aragorn
Erich Hückel
Sam, Merry e Pippim
Alexandre William Williamson, William Oding e Charles Frederic Gerhardt
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