Uma fruta que remonta aos primór-dios da humanidade e no mundo cristão ocidental é servida na Santa Ceia como símbolo de vida, representando o sangue de Jesus Cristo, está dando visibilidade e sabor à nova economia do Chile.
Os vinhedos ocupam terras pobres, onde dificilmente poderiam ser cultivadas outras plantas. São 110 mil hectares, em vales que vão de Norte a Sul do esguio país sul-americano, ocupando boa parte das terras planas que cobrem não mais do que 20% dos 2.006.626 quilômetros quadrados de seu território.
Nos últimos três anos, o cultivo de uvas para produção de vinho deu um salto extraordinário. De 300 milhões de litros anuais, o Chile passou a produzir 600 milhões de litros de vinho, que abastecem a mesa de norte-americanos, europeus e asiáticos, principalmente japoneses.
Mais do que quantidade, porém, o que os produtores chilenos estão buscando é vinho de qualidade. E estão de olho num mercado que, para eles, apresenta-se muito promissor, o brasileiro. O consumo per capita da maior nação latino-americana é de apenas 1 litro/ano, mas os chilenos apostam no aumento do poder aquisitivo brasileiro, possibilitando o consumo de produtos de melhor qualidade.
Tempo de colheita – Chegou o tempo da colheita – ou vendimia, como dizem os chilenos –, testemunhado pelo segundo grupo de capixabas a visitar o país nos três primeiros meses do ano. Durante sete dias, entre o final de março e início de abril, cinco jornalistas (dois de VidaBrasil) e outros 30 amigos do vinho puderam acompanhar, em visitas a 13 vinícolas, o início da produção de uma safra que só vai estar nas mesas de todo o mundo daqui a dois anos.
É nessa época que a mão-de-obra ocupada nos vinhedos cresce muito. Os chilenos migram de vinhedo em vinhedo como faz o brasileiro na colheita do café. Recebem entre 100 e 300 pesos por caixa colhida e ganham em média o equivalente a 10 dólares por dia enchendo as caixas de uvas. Trabalham em média uma ou duas semanas na colheita de um vinhedo.
É o tempo máximo para ter as uvas colhidas no ponto exato de maturação e de equilíbrio do tanino, responsável por aquele leve amargor do final da bebida.
O chileno já consumiu 40 litros de vinho por ano, mas ultimamente esses números caíram mais da metade, estando entre 15 e 20 litros anuais. Aumentar esse consumo não é tão prioritário para as principais vinícolas por um simples fator: o vinho que se bebe lá é o mais barato.
O que os produtores chilenos estão buscando é o vinho de primeira linha, destinado 95% para exportação.
Curiosamente, mais do que um dado econômico, a queda do consumo de vinho entre os chilenos causa outro tipo de preocupação. Eles não estão bebendo menos álcool, mas sim substituindo a bebida pela cerveja e destilados. Principalmente os mais jovens.
Quem bebe vinho no Chile prefere os mais baratos e bebe em grandes quantidades, ao contrário de quem busca os produtos de qualidade e maior valor agregado. Eis a razão de os produtores estarem com seus olhos voltados para o comércio externo, principalmente o Brasil.
E, nesse mercado, o Espírito Santo ocupa posição de destaque: detém o terceiro maior consumo per capita do país, perdendo apenas para o Rio Grande do Sul e São Paulo. Grosso modo, esse gosto pelo fruto da videira pode decorrer da descendência italiana de três em cada quatro capixabas.
Força na fruta – O segredo da boa uva, revela Jorge Fontaine, dono e enólogo da Vinícola El Principal, é o solo ruim: “A planta não pode crescer, por isso não se investe em correção do solo. A força se divide entre a planta e a fruta”.
Os donos dessas terras já descobriram que elas valem ouro. No Alto Maipo, região onde Fontaine investiu entre US$ 4 e 5 milhões desde 1998 para produzir vinho tinto, o hectare está valendo US$ 25 mil. Em três anos, as terras valorizaram cinco vezes em outra região que está nascendo para a viticultura, o Vale Casablanca, a meio caminho de Viña del Mar.
O Vale do Maipo é a região produtora mais próxima de Santiago. Ou melhor, está dentro da região metropolitana, que concentra mais de um terço de toda a população do país. Por ali estão grandes produtores como Santa Rita, Carmen, Cocha y Toro e Cosiño Macul, e gente que esmera na qualidade como El Principal e Parqua.
Na Vinícola Parqua desenvolve-se um audacioso projeto de manejo totalmente orgânico dos vinhedos, sob controle dos enólogos Juan Carlos Faundez e Álvaro Espinoza. O vinho produzido pela Parqua é 100% orgânico, mas um dos sócios do negócio, Francisco Santa Cruz, reconhece que, antes de ser orgânico, é preciso ser um bom produto:
“Por mais ecológica que a pessoa seja, ela não vai tomar um vinho apenas por ser orgânico. Talvez se tiver qualidade e for orgânico, aí sim ela faça a preferência por ele. Por isso, nossa preocupação é com a qualidade”.
Outro sócio do projeto é Ricardo Peña, um simpático advogado que está entre os três melhores do Chile, tendo convênio com escritórios de advocacia de outros países, como os Estados Unidos.
As ruas entre as fileiras de parreiras alternam-se entre as que têm a terra revolvida e aquelas que são deixadas com vegetação para que os insetos tenham o que comer e não ataquem as plantas da lavoura. Juan Carlos demonstrou como, utilizando aranhas maiores como predadoras naturais, controla a Ambrisellius, uma aranha minúscula, só vista com lente especial, e que come as folhas das parreiras.
Gramíneas e leguminosas são usadas, junto com ramas das parreiras, para virarem compostos que vão devolver à terra o nitrogênio perdido nos 25 hectares do vinhedo, cuja maior produção é de uvas Cabernet Sauvignon, a que manda nos vinhedos chilenos. O baixo índice pluviométrico é compensado com irrigação por gotejamento direto nos pés das plantas.
A Párgua ainda não tem vinho no mercado. É novinha, mas sua fama já corre o mundo. Toda a safra de 2001 do vinho Kuyen (filha da lua), degustado pelos capixabas em visita à vinícola, já foi comprada pelos ingleses. Um vinho com aroma de amora ou framboesa, limpeza frutal, carvalho elegante, um pouco de cassiz, boa maturidade de tanino, corpo médio, equilíbrio entre fruta, carvalho e tanino, e que na taça apresenta um tom café.
A qualidade da safra 2001 do Kuyen é coerente com um fator atribuído pelos produtores ao fenômeno El Niño: as safras de anos ímpares são melhores do que as de anos pares. Tudo por conta do longo período sem chuvas, que leva à produção de uvas de melhor qualidade para o vinho. Os produtores, porém, estão empenhados em quebrar esse tabu e fazer a safra de 2002 tão boa quanto foram as de anos ímpares anteriores.
Vinho e cultura – Jorge Fontaine está colhendo a quarta safra em uma fazenda de 54 hectares, dotada de uma moderna infra-estrutura de produção e armazenagem do vinho. Aos 43 anos, Fontaine aprendeu a arte do vinho na Vinícola Santa Rita, uma das maiores do Chile, mas resolveu investir em seu próprio negócio.
Uma semana antes de receber o grupo de capixabas para degustar seus vinhos e saborear o primeiro de uma série de almoços e jantares com produtores chilenos, Fontaine veio ao Estado prestigiar o concerto de cravos promovido pela Associação dos Amigos do Vinho do Espírito Santo no Teatro Carlos Gomes, no pré-lançamento do Encontro Nacional do Vinho, que será em agosto em Pedra Azul, Domingos Martins.
Fazer vinho no Chile é, antes de tudo, uma questão cultural. “Buscamos no Brasil pessoas que saibam dar esse valor ao nosso vinho”, revela Pablo Prato, da Viñedos Terranoble, em San Clemente, no Vale do Mallue, 250 quilômetros ao sul da capital.
Cultura que a Viña Valdivieso estampa nos rótulos de seus produtos com poemas de dois monstros sagrados da literatura do país: Pablo Neruda e Gabriela Mistral, ambos laureados com o Prêmio Nobel. É da vinícola o enigmático e cobiçadíssimo Caballo Locco, já em sua sexta versão. Recentemente no Japão, o Caballo Locco 1 teve uma garrafa vendida por US$ 1 mil.
O grupo capixaba que visitou a vinícola degustou o Caballo Locco 5, porque o 6, atualmente sendo desenvolvido, ainda está nas barricas de carvalho, onde o vinho dorme para ganhar vida, como bem definiu o francês Thierry Villard, 52 anos, que resolveu apostar no Vale Casablanca, região de concentração de vinhos brancos, como o Chardonnay, e é o menor produtor de vinhos do Chile, com apenas 23 hectares plantados com o esmero de um artista.
É comum o “leilão” entre as vinícolas pelos melhores enólogos. Uma nova geração de chilenos está chegando ao setor. São jovens, geralmente filhos de produtores, que vão fazer agronomia, depois complementam com dois anos de especialização em enologia, e voltam para casa a fim de assumir o controle da qualidade do tesouro familiar e garantir a melhor herança para o futuro.
Mas há também a busca da experiência de quem faz vinho em outros países. Um desses laureados, o neo-zelandês Bret Jackson, tem um enorme desafio nas mãos: há cinco meses ele substituiu o enólogo da Viña Valdivieso que desenvolvia o Caballo Locco com a missão de fazer o Caballo Locco 6 com o mesmo padrão dos anteriores.
É um vinho misterioso, com cin-
co uvas diferentes, principalmente Cabernet Sauvignon (60%) e Merlot. Para não fugir ao padrão, as barricas das versões anteriores são esvaziadas apenas pela metade, recebendo a nova versão para o período de maturação. Mesmo o melhor degustador terá dificuldades em distinguir a predominância de alguma uva, mas no geral o Caballo Locco é muito agradável, a partir da cor intensa. Não foi sem razão que ele fechou a degustação de alto nível promovida pela Valdivieso, onde sobrou simpatia da recepção.
O pioneirismo de Gilmore – A produção de vinho no Chile é, cada vez mais, uma questão de compromisso cultural, e que volta a ser passada de pai para filho. A própria história do país está intimamente ligada aos vinhedos, os primeiros deles plantados por colonizadores espanhóis vindos do Peru e que visavam a produção de vinho para a ceia cristã.
Essa nova fase da frutivinicultura é relativamente recente. A história tem duas fases. A intensificação do plantio de uvas e da produção de vinhos remonta ao século XIX, período do qual se originam as vinícolas mais antigas. Mas os métodos de produção ainda eram arcaicos, como conta Francisco Gilmore, um dos líderes da Corporación Chilena del Vino, uma das duas entidades associativas dos produtores do país.
A reforma agrária empreendida entre os governos de Jorge Alessandri Rodríguez (1958-64) e de Eduardo Frei Montalva (1964-70) desestimularam os antigos produtores a realizarem novos investimentos em seus plantios. No governo de Salvador Allende, derrubado por um golpe militar em 1973, as grandes vinícolas foram estatizadas.
Quando o regime militar devolveu, em 1976, as vinícolas para a iniciativa privada, muitos dos antigos produtores já haviam desanimado do negócio, que passou a ser tocado por gente oriunda de outros setores da economia. Foi a oportunidade, também, da maior profissionalização do negócio-vinho no Chile.
Em 1995, o governo estabeleceu regras para produção de vinho, profissionalizando ainda mais o setor. Nos últimos anos, o país tem atraído famílias inteiras de franceses acostumados com esse negócio. E talvez atrás da Carménère, uma uva oriunda da região de Bordeaux, que se extinguiu por lá devido às pragas, mas que “renasceu” no Chile.
A história de Francisco Gilmore, 52 anos, é da época da devolução das fazendas à iniciativa privada. Filho de um coronel do Exército, engenheiro químico há 25 anos, ele adquiriu as primeiras terras na antiga Vinícola Tabontinaja, em San Javier, 270 quilômetros ao sul de Santiago, e instalou o que hoje é uma das vinícolas mais avançadas tecnologicamente do Chile.
Ao lado de Francisco está a filha, Daniela Gilmore, 27 anos, engenheira agrônoma e enóloga, que controla a qualidade de tudo o que se produz. A Tabontinaja incorpora um conceito totalmente novo, voltado para o agroturismo.
Francisco criou o seu Jardim das Uvas, junto com os enólogos americanos Randy Ullom e Rendall Jackson, que ficaram com ele de 1993 a 2000. No jardim, exerce vigilância paterna sobre 30 diferentes espécies de uvas, estudando as que melhor se adaptam ao país e à sua região. Na frente das parreiras, são plantadas roseiras, as primeiras a serem atacadas por pragas que estejam pretendendo invadir o vinhedo. “Conhecendo a praga, podemos combatê-la 24 horas antes de chegar às uvas”, ensina Gilmore.
São 70 hectares em vinhedos, produzindo 180 mil garrafas por ano com a marca Gilmore, no Vale do Maulle, que responde com quase 40% da produção de uvas do Chile. A fazenda está em constante transformação, com a construção de uma pousada ainda não inaugurada, mas que hospedou a delegação capixaba, e de uma igreja-museu mostrando mil anos de história, desde os tempos em que o território chileno era todo ocupado por indígenas.
Por lá não existe telefone para que o clima rural não seja quebrado. A água é mineral e bebida direto da torneira. Devido à influência da Cordilheira dos Andes, o sulfato de magnésio é latente. Um copo de água nessa região do Chile é o mesmo que tomar uma pastilha de magnésio. A combinação de solo e clima liquidou no Chile com as pragas que atacam vinhedos da Califórnia.
Gilmore acaba de plantar uma lavoura de cortiça para produzir a rolha das garrafas de seu vinho. Hoje o produto é importado de Portugal. Mas isso é negócio para o futuro. A árvore leva 40 anos para a primeira colheita das cascas.
Em busca de fidelidade – Ariel Peres, 29 anos, é o que se pode chamar de um apaixonado pelo vinho. Há 14 anos ele trabalha na área. Formado em Turismo e Hotelaria, há sete anos fez curso de somelier, mas ainda adolescente começou a trabalhar no Hotel Plaza San Francisco, no centro de Santiago.
Com uma receita própria de cassiz, ganhou duas das três edições da Expo Gurmann, realizadas de 1999 a 2000, com exibição de coqueteria. Tem também curso de degustador em vinho Premium.
Há cinco anos ele começou a desenvolver o turismo de viticultura. Fez assessoria no Uruguai, Argentina, México e no Brasil, para a Casa do Porto. É pioneiro na promoção do intercâmbio de potenciais divulgadores e as vinícolas chilenas.
Quando iniciou esse trabalho, em 1997, estava orientado a visitar as vinícolas tradicionais, como Concha y Toro e Cousiño Macul. Mas há um ano e meio ele mudou o rumo, fazendo o enoturismo com outras vinícolas menos tradicionais, mas com proposta de prestar um serviço integral: leva o visitante ao produtor, onde almoça, degusta, compra e faz harmonização comida-vinho.
Nas regiões da Califórnia (EUA) e Bordeau (França) há um trabalho parecido, mas não igual. “Nosso alvo é o multiplicador de informação, objetivando formar um público fiel, que venha ao Chile e, depois, mande os amigos. As companhias antes muito fechadas hoje se abrem a
esse programa. Os produtores estão loucos para levantar o nome do vinho chileno”, comenta Ariel.
O Brasil é prioridade do trabalho de Ariel Peres – e dos produtores chilenos – porque é visto com grande potencial de consumo. O Encontro Nacional do Vinho, realizado anualmente em Pedra Azul, na região montanhosa do Espírito Santo, está promovendo uma mudança na maneira de o brasileiro ver o vinho chileno, avalia Peres: “Sinto-me o grande responsável por levar o vinho chileno ao Brasil”.
O início desse trabalho de levar brasileiros ao Chile não foi fácil. Ariel conta que começou a bater nas portas das vinícolas e, se hoje as portas estão abertas, antes não era assim. Houve muita resistência porque as vinícolas não acreditavam no mercado brasileiro. “Mas hoje só falam no Brasil. O vinho chileno vai explodir no Brasil e o intercâmbio vai crescer muito para os vinhos finos”.
Ariel não se preocupa com a perspectiva de os produtores buscarem o aumento da produção para atender aos novos consumidores: “O mercado vai regular quem vai obter sucesso. Fica quem mantiver e melhorar a qualidade”.
Péricles Gomes, da Casa do Porto, que apostou no vinho chileno, não se arrepende: “O mercado brasileiro ainda é muito criança para o vinho. Em 1997, quando estive no Chile pela primeira vez, tudo era só conversa. Em 1995 comprei uma caixa de Domus e levei três anos para vender. O apreciador de vinho só compra se souber o que é. Hoje, uma caixa de Domus sai em menos de um mês”.
Nos dias 28 e 29 de junho, Péricles e Ariel Peres estarão juntos de novo na Feira do Vinho, que pretende reunir 6 mil pessoas no Mercure Hotel, em Belo Horizonte. Para participar, o visitante vai comprar uma taça de cristal por R$ 35 para degustar o que as vinícolas vão mostrar, e assistir a quatro palestras com jornalistas especializados e enólogos brasileiros e chilenos.
“Será uma oportunidade única para encontrar pelo menos 25 diferentes enólogos reunidos em um mesmo espaço”, anima-se Péricles.
O enólogo Ignácio Recabarren é um mito no mundo do vinho. No Chile, com certeza é a principal referência. Os mais jovens tremem só de vê-lo. Para eles, avistar-se com Recabarren é o mesmo que encontrar-se com o papa.
A degustação que Ignácio comandou na Vinícola Domus Aurea, no encerramento da visita do grupo de capixabas aos vinhedos chilenos, mostrou porque ele é um mito. Tudo transcorreu com a solenidade de um culto, como se o próprio Baco estivesse ali em pessoa. Silêncio e reverência para ouvir a voz do sacerdote.
Degustam-se verdadeiras obras-primas: o Alva 1999, o Stela Aurea 1998 e o Domus Aurea 1999. E uma revelação do enólogo: o Domus 1998 foi considerado um dos seis melhores vinhos do Chile, colocando-se lado a lado com outros vinhos de 1999, ano ímpar, portanto, das melhores safras. O Domus 1999 ainda está maturando: “A expectativa é muito grande para quando atingir sua plenitude”
No final da degustação, Ignácio, que trabalha ao lado da mulher, a também enóloga Ana Salomo, na produção das plantas tratadas com esmero nos restritíssimos 35 hectares de Ricardo Peña no Vale do Maipo, revelou-se um ser humano de carne e osso. Atendeu com simpatia aos pedidos de fotos, conversou descontraidamente e até autografou cortiças para a coleção que cobre as paredes do apartamento da jornalista mineira Andréia Pio.
O mito Recabarren discorre com propriedade sobre as características de cada região produtora do Chile e os fatores que influenciam na boa safra: “Estamos na zona limítrofe do Maipo. Aqui é o Maipo Médio. No Maipo Alto há maior influência da cordilheira, no Baixo é mais quente e o vinho tem pouca personalidade”.
E lá vai ele em seu passeio na geografia do vinho chileno: “Mais ao sul, em Curicó e Molina, o Sauvignon Blanc não é verdadeiro. Produz-se Chardonnay para vinhos médios, mas não se pode dizer que existe a mesma qualidade em todos os vinhedos. Em Talca e no Vale do Mallue, choveu 150 milímetros em um só dia, afetando a produção. Destaque para o Cabernet Sauvignon em San Clemente, para o Carmenère e o Merlot em Talca, e para o Sauvignon Blanc em todo o Vale do Mallue”.
Os Vales do Itati e Bio-Bio, no extremo sul, segundo Ignácio Recabarren, primam pela irregularidade: “Em 10 anos, três dão boas safras, quatro são ruins e três mais ou menos”.
Para Ignácio, por sua afinidade com os mariscos chilenos, o Sauvignon Blanc tem futuro no Vale do Casablanca. Ao sul de Casablanca vê potencial para a Pinot Noir. Para todo o país, a previsão dele é de sucesso para a uva Malbec. É só esperar. Ele não acredita na massificação da Chardonnay, “uma variedade não- aromática”. E alfineta: “Se misturam com abacaxi para acrescentar aroma, não é mais Chardonnay”.
Por fim, uma síntese do pensamento do mito Ignácio Recabarren sobre o atual momento da produção de vinhos chilena: “As vinícolas grandes podem buscar ampliar mercados, mas as outras menores fazem do vinho um estilo”.
A Domus Aurea se limita à produção
de 108 mil garrafas por ano.
Carabinero – Vestir o uniforme da terceira melhor polícia do mundo – atrás apenas da inglesa e da italiana – é motivo de tanto orgulho para o segundo sargento José Barría Andrade, 42 anos, que ele se emociona várias vezes durante a conversa com o jornalista de VidaBrasil, a poucos metros da escada que leva ao gabinete do presidente chileno Ricardo Lagos.
Barría faz parte da guarda do Palácio La Moneda, na Praça da Liberdade, bem no centro de Santiago. O mundo passou a conhecer o palácio em 1973, quando o local foi bombardeado pelos golpistas liderados pelo general Augusto Pinochet, levando à morte do presidente Salvador Allende e à instalação de uma das mais sangrentas ditaduras da América Latina.
O sargento Barría era apenas um garoto de 13 anos na época. Há 18 entrou para os Carabineros de Chile, corporação de 36 mil homens, que desperta orgulho nele e em qualquer outro de seus colegas. Um cabo revelou ganhar em torno de US$ 500 (cerca de R$ 1,2 mil), mas o sargento não fala de seus salários, preferindo ressaltar a extrema consciência de seu papel social.
“Já ajudei a muitas mulheres a darem a luz dentro de rádio-patrulhas. Perdi a conta das pessoas que ajudei como carabinero. Isso vale mais do que qualquer dinheiro”, orgulha-se o segundo sargento, que atribui à estreita vigilância e à punibilidade aos desvios a boa reputação e a confiança dos chilenos em sua polícia.
A população também confia muito nos carabineros, que tem como missão constitucional a ordem interna, mas, em caso de conflito externo, junta-se ao Exército como força armada para defender o país. A razão dessa confiança, segundo o sargento da guarda palaciana, é a disciplina: “Não se contemporiza com os erros. Quem comete falhas é imediatamente punido, preso e expulso. Só fica quem tem o espírito de carabinero”.
A outra grande paixão de José Barría, entretanto, ainda não pode ser realizada: aprender o português. Ele procurou a Embaixada Brasileira em Santiago mas o custo é proibitivo para quem, como ele, vive de seu salário. E lamenta:
“É uma pena, porque o ensino da língua deveria ser prioridade para um país-irmão como o Brasil. O português é lindo e muitos brasileiros vêm nos visitar. Isso facilitaria muito o entendimento e darmos ainda maior atenção a vocês”.
Palácio aberto – O La Moneda, onde Barría faz segurança, é um palácio aberto, com restrição apenas à ala onde ficam o presidente da República, o secretário da Presidência, o secretário de Governo e o secretário de Interior, pastas estratégicas. O palácio é cercado por antigas edificações, onde ficam todos os ministérios.
O trânsito é livre de pessoas e veículos em suas proximidades, dando um certo ar de aproximação do poder com os chilenos. O parlamento, porém, composto pelos representantes populares, é sediado em Valparaíso, cidade histórica e litorânea a 120 quilômetros da capital. Foi deslocado para lá pela ditadura de Augusto Pinochet.
O Chile é muito dividido politicamente. O socialista Lagos foi eleito com estreitíssima vantagem em relação ao representante dos seguidores de Pinochet: 50,5 a 49,5%. Essa tensão política, longe de atrapalhar, parece dar aos chilenos uma vantagem comparativa com os brasileiros. Por mais humilde que a pessoa seja, ela tem posição política.
“Temos uma classe média proporcionalmente maior do que a brasileira, o que nos dá um certo equilíbrio e uma maior politiza-
ção”, avalia o advogado Ricardo Peña, que investe em duas vinícolas – a Párgua e a Domus.
As pessoas públicas não são figuras difíceis no Chile. Na visita ao Mercado Central, lotado de chilenos e turistas atraídos pela comida rica em frutos do mar na Semana Santa, a reportagem de VidaBrasil pôde ter contato com a simpática Martita Frei, mulher do ex-presidente socialista Eduardo Frei e apontada como possível futura presidente do país, numa disputa nada fácil com a UDI do grupo de Pinochet.
Martita agitou o ambiente quando
fez um corpo-a-corpo por lá, mas foi solí-
cita e fez comentários elogiosos ao presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, que apenas uma semana antes havia estado no país
O Chile
O Chile é um país latino-americano de costas para o resto do continente. Sua principal identidade com seus vizinhos é o idioma espanhol. De resto, tem-se a impressão de estar-se em outro continente, em que pese o carinho que os chilenos têm com os brasileiros (e a recíproca parece ser verdadeira).
Sua economia é a mais liberal da América do Sul. Não há ensino superior gratuito, mesmo nas duas únicas universidades públicas. Segundo o Instituto Nacional de Estatística do Chile (INE), a força de trabalho no fim de 2000 era composta de 5,872 milhões de pessoas, correspondente à população da região metropolitana de Santiago.
Há pelo menos 500 mil desempregados, índice que cresceu muito nos últimos cinco anos. Descontando os desempregados, 27,7 % da força de trabalho está nos serviços comunitários, sociais e pessoais, 18,5 no comércio, 14,4 % na agricultura e pesca e 14 % na indústria.
A mineração continua sendo a principal atividade econômica do país, seguida da silvicultura e, em terceiro lugar, a fruticultura, especialmente uvas, maçãs e peras. Outra atividade que pesa na economia chilena é a pesca.
O prato da população tem muitos frutos do mar, que podem ser encontrados em variedades no Mercado Central, principalmente no tradicionalíssimo Donde Augusto, mas os chilenos gostam muito de carne, principalmente cordeiro na brasa, acompanhado de batatas, como foi servido para o grupo de capixabas na Vinícola Cono Sur, servido com alguns dos melhores vinhos Reserva do País.
Santiago tem 10 vezes mais moradores do que Concepción, a segunda maior cidade do país, com pouco mais de 500 mil habitantes. Viña del Mar, cidade moderníssima, e Valparaíso, com seus sítios históricos, seu porto e a sede do Congresso Nacional, juntas têm mais de 600 mil pessoas. A apenas 120 quilômetros da capital, passando pelo exuberante Vale Casablanca, berço dos melhores vinhos brancos do país, e cortando por túneis na Cordilheira da Costa Oeste, de menor altura, mas que corre paralela à monumental Cordilheira dos Andes.
O brasileiro em Viña del Mar não consegue conter a emoção diante do Estádio El Salsalito, onde o Brasil conquistou o bicampeonato mundial em 1962. Quem gosta, ou os curiosos, podem visitar o Cassino Municipal, um palácio chique bem no centro da cidade, onde se respira muita segurança.
Dos 15 milhões de habitantes do Chile, quase 1 milhão são de etnias indígenas – mais de 90% deles dos mapuchos, índios que migraram do Rio Grande do Sul para as terras andinas.
Um dólar vale 650 pesos, e um real custa 250 pesos. O salário mínimo é de 200 dólares (R$ 470), mas o custo de vida é bem mais alto, como observa o viticultor e advogado Ricardo Peña. O governo socialista de Ricardo Lagos está às voltas com a privatização da Saúde, que coloca contra ele seus próprios companheiros de partido.
A capital é uma metrópole como outra qualquer. Os crimes contra a vida não são muitos, mas a recomendação dos próprios chilenos é de cuidados especiais com bolsas e carteiras. A polícia é eficiente, mas não dá conta de controlar esse tipo de criminalidade. A arquitetura se divide entre o histórico e o moderno, numa parte nova da capital, onde se apresenta arrojada e futurista.
É cada dia maior o fluxo de turistas, mas os serviços de recepção e em restaurantes e hotéis é ruim. Em alguns, muito ruim. Parece faltar profissionalismo.
Outro contraste é a frota de ônibus que circula na capital, com muitos veículos velhos e de modelo superado. Há estudos para modernizar esse transporte coletivo rodoviário.
O metrô funciona eficientemente. Uma ferrovia corta o país de norte a sul, quase lado a lado com a Ruta 5, a Rodovia Panamericana, que tem 4.500 quilômetros. As principais rodovias já estão privatizadas.
O pedágio é caro para os padrões brasileiros, mas os chilenos não reclamam, já que, graças a ele, as estradas estão sendo modernizadas. Numa viagem de 250 km de Santiago a Talca, paga-se de pedágio o equivalente a R$ 25. O poder público investe na melhoria de estradas secundárias, quase todas pavimentadas.
O país tem um governo central e está dividido em sete regiões administrati-
vas, cujos chefes são indicados pelo governo. Antes, eram pessoas distantes da realidade local. Hoje, os chilenos já conseguem que os administradores sejam de suas próprias regiões.
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